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"É necessário saber perder tempo para comprometer-se nas lutas dos povos periféricos e das classes oprimidas. É necessário saber perder tempo em ouvir a voz de tal povo: suas propostas, interpelações, instituições, poetas, acontecimentos... É necessário saber perder tempo, no curto tempo da vida, em descartar os temas secundários, os da moda, superficiais, desnecessários, os que nada têm a ver com a libertação dos oprimidos." - Enrique Dussel

sábado, 30 de março de 2013

A PSICOLOGIA COMO CIENCIA INDEPENDENTE [IN: PSICOLOGIA UMA (NOVA) INTRODUÇÃO]

POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes


No século XIX começam a se constituir ciências da sociedade, como a Economia, Política, História, Antropologia, Sociologia e Linguística, todas tratando das ações humanas, das suas obras e seus comportamentos, estando então as questões psicológicas dispersas nos diálogos entre essas ciências. Podemos analisar como se deu essa emergência da ciência psicológica fazendo um panorama sobre a história do pensamento, do Positivismo à contemporaneidade, e levantarmos as questões da subjetividade privatizada, sua experiência e experiência de sua crise.
            No positivismo de Auguste Comte (1798-1857), só havia lugar para as ciências biológicas e sociais, e como o ‘objeto de estudo’ considerado da Psicologia era a mente, e essa por sua vez não era passível de observação, não se achou lugar para a Psicologia se constituir ciência, tendo que entender-se ora parcialmente reconhecida como dependente da ciência biológica, ora da ciência sociológica. Como resultado de pesquisas historiográficas e antropológicas reconhecerem a experiência da subjetividade privatizada enquanto um fato social, portanto desenvolvendo-se, difundindo-se e propagando-se num contexto sociológico, surge o interesse de estudar-se os fatores constitutivos dessas experiências subjetivas enquanto tradições culturais.
            Estas mesmas pesquisas acabaram por demonstrar que as grandes irrupções da experiência subjetiva privatizada ocorrem em situações de crise social, quando os valores, normas e costumes são contestados, surgindo novas formas de vida. Isso se dá pelo fato do homem se ver obrigado a recorrer ao seu ‘foro íntimo’, uma vez que a vivência de uma experiência de desconstrução valorativa força-o a construir referencias internas, inferindo sobre sua identidade, sentimento, desejo e concepção de justiça. O homem imerso nessa experiência subjetiva sente-se como livre, e responsável por sua própria vida.
            Podemos entender que essa experiência de ‘perda de referencias’ teve seu ápice no advento da Modernidade, uma vez que o Renascimento desconstruiu a sensação de ordem superior que amparava ao mesmo tempo que constrangia o homem medieval. O surgimento da Imprensa proporcionou a experiência da leitura silenciosa, o que propiciou a experiência da criação de um diálogo interno, desenvolvendo um ponto de vista próprio no sujeito. Essa falta de referencias ‘medievais’ no período moderno culminou no ceticismo, que levanta a questão da impossibilidade do conhecimento seguro sobre o mundo, que, somada ao grande individualismo crescente resultou em duas epistemologias distintas: O Racionalismo e o Empirismo.
            Nas “raias do Humanismo”, encontramos a tentativa de resgatar os valores medievais na pessoa de Pico Della Miranda, que chegou à concepção de que a liberdade é um grande e exclusivo dom de Deus, sendo o homem recompensado ou punido de acordo com o uso dele. Assim, o sujeito deve sujeitar-se mais uma vez, desvalorizando seus desejos e projetos particulares.
            Com o Iluminismo ( século XVIII), vem a dúvida da capacidade humana de atingir a verdade absoluta e indubitável, defendida pelo Racionalismo Moderno Cartesiano por meio da liberdade total da razão, em antítese ao Empirismo Moderno de Francis Bacon. O Filósofo Hume  coloca o “eu” como efeito de sua experiência, não mais como senhor dela, o que podemos perceber claramente em sua máxima “Tábula Rasa”. Já para Kant, o homem pode absolutizar as coisas tal como se apresentam para ele fenomenicamente, não as coisas ‘em si’ .
            Diante de toda essa dialética epistemológica, surge com o Romantismo (fim do século XVIII) a idéia de um homem não mais essencialmente racional, mas passional e sensível, deslocando assim o “eu” para um lugar obscuro. É com Nietzsche e sua ‘ filosofia-à-marteladas’ que a noção de “sujeito” e do “eu” são definitivamente desconstruídos, sendo relegados á ordem da ficção, e considerada fantasiosa toda afirmação de que exista uma posição central no mundo, de que o homem esteja nessa posição,e até mesmo a afirmação de uma unidade.
            O sistema sócio-econômico com suas cargas de conflitos e transformações também aprofundou e universalizou aquelas experiências subjetivas. A situação de barganha -  onde o que vale é ‘tirar vantagem do outro para o proveito próprio’ – levou a experiência de que os interesses de cada um são mais importantes do que os interesses da sociedade, bem como o mercado de trabalho, que baseia-se no pressuposto da massificação da condição humana, enquanto simples mão-de-obra, alienando o homem trabalhador de reconhecer-se experiente de subjetividade. Desaparece a noção de liberdade e solidariedade; nesse contexto, ser livre significa ser desamparado.
            Em contrapartida, na busca de reduzir os ‘inconvenientes’ da liberdade, das diferenças singulares, etc, o Estado instala no indivíduo um verdadeiro sistema de docilização e domesticação, colocando em risco as idéias liberais de igualdade, liberdade e fraternidade. A descoberta da presença forte desse sistema de docilização do indivíduo chamado Disciplina põe em crise a subjetividade privatizada, enquanto os indivíduos percebem-se iludidos nos ideais de liberdade e diferença, e os interesses particulares levam a conflitos. A liberdade para cada um tratar de seus negócios desencadeou crises, lutas e guerras.
            O Estado, vendo a necessidade de combater os movimentos reivindicatórios e para por um pouco de ordem na vida social, faz-se desenvolver-se em sua estrutura administrativa, burocrática e militar. Em meio a essa crise, expressa-se o reconhecimento de que existe um sujeito individual, e a esperança de que é possível padronizá-lo segundo uma disciplina, normatizá-lo, e colocá-lo enfim ao serviço de uma ordem social demanda uma psicologia aplicada, principalmente nos âmbitos da educação e trabalho. Assim, o próprio regime Disciplinar, em si mesmo, exige a produção de um certo tipo de conhecimento psicológico.
            Dessa forma, estabelece-se assim, no final do século XVIII as condições para a elaboração de um projeto de psicologia como ciência independente, e para as tentativas de definição do papel do psicólogo como profissional nas áreas de saúde, educação e trabalho.
           

FONTE: FIGUEIREDO, L.C.M; SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de: Psicologia Uma (nova) Introdução.EDUC, SP, 2008 – 3ª edição. Pp. 12-53.


O PENSAMENTO CARTESIANO: INFLUÊNCIAS E CONSEQUÊNCIAS NA MODERNIDADE


Por Almir Fabiano N. de Moraes


INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretende-se traçar um caminho que vai das considerações sobre o período histórico da modernidade até uma breve análise do pensamento de René Descartes, culminando no Discurso do Método, precisamente nas quatro regras do Método.
Para tanto, procurou-se estabelecer um singelo trabalho de pesquisa, a fim de trazer “polifonia” nas concepções e conceitos aqui trabalhados, necessária a todo trabalho para fins acadêmicos.
Pretendemos assim, trabalhar as considerações sobre o período histórico da modernidade a partir dos escritos de Julián Marias e Danilo Marcondes. Para trabalharmos sobre o Discurso do Método, tomaremos por embasamento as obras de Franklin Leopoldo e Silva, Ethel Menezes Rocha e o prefácio da terceira edição do Discurso do Método pela editora Martins Fontes, baseada nos escritos de J. M. Fateaud.

PARTE I: AS ORIGENS DO PENSAMENTO MODERNO

“A etimologia de ‘Moderno’, parece ser o advérbio latino ‘modo’, que significa ‘agora mesmo’, ‘neste instante’, ‘no momento’, portanto designando o que nos é contemporâneo, e é este o sentido que ‘moderno’ capta, oponde-se ao que é anterior, e traçando, por assim dizer, uma linha, ou divisão entre os dois períodos”.
(MARCONDES, 2006, pg. 140)
O conceito de modernidade para nós está sempre relacionado ao “novo”, àquilo que rompe com a tradição. É um período que convencionalmente compreendemos como sendo entre séculos XVII e XIX da nossa era.
O termo “moderno” já era usado na filosofia medieval, no movimento da “lógica modernarum” que se opunha à tradição anterior já no século XIV, no cristianismo, nas questões sobre o objeto da fé que opções “antiqui e moderni”, e na querela dos literários franceses das últimas décadas do século XVII, os quais distinguiam “les ancians et les modernes”.
Portanto, a identidade do período moderno se estabelece inicialmente como uma ruptura e rejeição da autoridade da tradição seguidos de uma concepção de superioridade do “novo”.
Cabe aqui mais uma citação de Danilo Marcondes sobre a concepção de modernidade:
“[...] Duas noções fundamentais estão, entretanto, diretamente relacionadas ao moderno: a idéia de progresso, que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avançado do que o antigo; e a valorização do indivíduo, ou da subjetividade, como lugar de certeza e da verdade, e origem dos valores, em oposição à tradição, isto é, ao saber adquirido, às instituições, à autoridade externa”.
(Ibdem)
Marcondes estabelece três fatores históricos principais que podem ser atribuídos à origem da filosofia moderna: o humanismo renascentista do século XV, a reforma protestante do século XVI e a revolução científica do século XVII. Porém, salienta a importância de outros fatores históricos além destes:
“[...] Vamos analisar em maior detalhe como contribuem decisivamente para a formação do pensamento moderno, sem ignorarmos, no entanto, outros fatores históricos como a descoberta do Novo Mundo (1492), o desenvolvimento do mercantilismo como novo modelo econômico (...), e o surgimento e consolidação dos Estados Nacionais (Espanha e Portugal, Países Baixos, Inglaterra e França), que substituem o modelo político do feudalismo”. (Op. Cit., pg. 141)

I.A – O HUMANISMO RENASCENTISTA:

Marcondes salienta que foi Biagio Vasari quem primeiro empregou o termo “renascimento” (rinascitá) em sua obra “Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos” (1550), para designar a retomada do estilo clássico na pintura pelo pintor Giotto, influenciando um novo estilo, que rompe com a arte gótica, característica do final do período medieval.
Salienta também que o conceito de Renascimento designando o período histórico intermediários, entre o medieval e o moderno origina-se do historiador da arte Jacob Burkhardt, em sua obra “A civilização do Renascimento na Itália” (1673).
Para Marcondes, o traço mais característico deste período é o humanismo, que segundo ele, chega a ter influência determinante no pensamento moderno. Discorre sobre as características deste período:
- Tem por lema o fragmento do filósofo grego da sofística Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Para Marcondes, este lema marca a ruptura com o período medieval, visão hierárquica de mundo, arte voltada para o elemento sagrado e a filosofia à serviço da teologia;
- Retomada da herança greco-romana como base da nova identidade cultural;
- Temas pagãos centrais nas obras de arte;
- Rejeição da filosofia de Aristóteles (referencial escolástico), em contrapartida de uma preferência a Platão, porém um “Platão poeta, estilista da língua grega, dialético e de grandes dons literários;
- Rompimento com a visão teocêntrica e com a concepção filosófico-teológica medieval;
-Ruptura com a importância dada às ciências naturais;
- Tema da “dignitas hominis” (dignidade do homem) opondo-se ao tema medieval “miséria hominis” (miséria do homem);
- Valorização da liberdade humana, visão do homem como centro da criação, da dignidade natural e concepção do “homem como um microcosmo, que reproduz em si a harmonia do cosmo”. (conf. Op.cit.; pgs. 141 e 142).

I.B - A REFORMA PROTESTANTE:

Danilo Marcondes relata que a ruptura provocada pela reforma é um dos fatores da modernidade, no sentido de que o protestantismo – movimento de oposição à Roma – defende a idéia de que a fé é suficiente para que o indivíduo compreenda a mensagem divina dos textos sagrados (regra da fé), não necessitando de intermediação da Igreja. Para ele,
“a ‘regra da fé’ representa na verdade a defesa do individualismo contra a autoridade externa, o saber adquirido e contra as instituições tradicionais, todos colocados sob suspeita”. (Ibdem, pg. 147).
Em relação à influência da Reforma na filosofia moderna, vale citar mais um parágrafo de Marcondes:
“Podemos considerar assim que, de um ponto de vista filosófico, a Reforma aparece neste momento como representante da defesa da liberdade individual e da consciência como lugar da certeza, sendo o indivíduo capaz pela sua luz natural de chagar à verdade (em questões religiosas) e contestar a autoridade institucional e o saber tradicional, posições que se generalizarão além do campo religioso e serão fundamentais no desenvolvimento do pensamento moderno, encontrando-se expressas um século depois em seu mais importante representante, René Descartes. A ênfase dada por Lutero (...) à consciência, certamente prenuncia a filosofia de Descartes, bem como o espírito crítico característico da Modernidade".
(Op. Cit., pg 146).
Julián Marías cita a “regra da fé” como o aspecto mais importante da Reforma, porém ele usa o termo “o livre exame” para referir-se ao mesmo. Marías chega a determinar este aspecto da Reforma como “racionalismo puro”, estabelecendo consonância com a frase inicial de Descartes no Discurso do Método: “o bom senso é o que há de mais bem distribuído no mundo”. (Julián MARÍAS, 2009, pg. 298).
Julián Marías distingue dois tipos de Igreja Reformada:
- Igreja “Nacional”, que se forma em torno da pessoa do Rei;
- Confissão de Ausburgo, supõe um “acordo” sobre matérias de fé, um “protestantismo liberal” que se constitui na supressão de quase todo o conteúdo dogmático.
Pertinentemente, coloca como “o problema da Reforma” a divisão da Europa em Reforma (protestantes) e Contra-Reforma (católicos) – que alguns têm substituído pelo termo “Reforma Católica”. Sobretudo, porém, o que mais nos interessa destacar aqui são as conseqüências históricas que Marías elenca, dos sistemas racionalistas na física e na filosofia (Galileu, Newton, Descartes, Spiñoza e Leibniz):
- O ABSOLUTISMO:
“[...] Temos, pois, um Estado com uma personalidade, e este Estado tem suas razões: age, portanto, como uma mente. Trata-se de uma personificação racionalista do Estado, que aparece junto com as nacionalidades modernas”.
(Ibdem, Pg. 298).
Segundo Marías, a justificação racional da monarquia absoluta é a fala de Descartes sobre política, onde dita que as coisas são mais bem feitas quando feitas segundo a razão, e por um só, não por vários (Ibdem).
- A DIPLOMACIA:
Esta, para Julián Marías é apenas a substituição da relação direta de Estados entre si por uma relação pessoal abstrata.
Conclui assim:
“A nação está personificada no rei absoluto: as relações entre as nações se resumem e personificam na conversação de alguns poucos homens. Os Estados começam a ocupar um lugar na mente de cada indivíduo”
(Op. Cit., pg. 299).

I.C – A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA:

Para Danilo Marcondes, a revolução científica moderna tem seu ponto de partida na “Revolução Copernicana” (1543), com a concepção heliocêntrica do cosmo. Representa para ele um dos fatores de ruptura mais marcantes no início da modernidade, uma vez que ia contra uma teoria estabelecida há mais de vinte séculos.
A rejeição dos modernos pelo Aristotelismo se explica pelo modelo geocêntrico do cosmo e pelo uso escolástico da lógica Aristotélica na demonstração de verdades universais e necessárias, em detrimento da observação e da experiência. A cosmologia não poderia ser considerada independentemente de seus pressupostos metafísicos e teológicos, um modelo que não “salvava os fenômenos” (MARCONDES, 2006, pg. 150).
Marcondes, sobre este aspecto, cita a transformação científica:
“Uma das principais transformações do ponto de vista da metodologia científica está precisamente na invasão dessa ordem de prioridades. A ciência moderna surge quando se torna mais importante salvar os fenômenos e quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico”.
(Ibdem, pg. 150).
Ainda seguindo a orientação de Marcondes, considera-se duas grandes transformações que levarão à revolução científica:
1) DO PONTO DE VISTA DA COSMOLOGIA:
- A demonstração da validade do modelo heliocêntrico, empreendida por Galileu;
- A formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno;
- A concepção do movimento dos corpos celestes;
2) DO PONTO DE VISTA DA IDEIA DE CIÊNCIA:
- A valorização da observação e do método experimental como ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos antigos;
- A utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica, contrária à concepção aristotélica;
- A ciência ativa rompe com a separação antiga entre ciência (epistême), o saber teórico, e a técnica (techné).
“A Revolução Científica moderna resulta portanto da conjugação desses fatores, para o que contribuíram diferentes pensadores ao longo dos séculos XV e XVII, sendo que, em certos aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda em teorias clássicas. Só com Newton, praticamente já no século XVIII, é que teremos a formulação de uma ciência físico-matemática plenamente elaborada em um sistema teórico”.
(op.Cit. pg. 151).
Trataremos mais sobre a revolução científica no próximo item.

PARTE II: O PENSAMENTO CARTESIANO

II.A – INFLUÊNCIA DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA NO PENSAMENTO CARTESIANO:

Ethel Menezes Rocha considerou o século XVII caracterizado por uma série de descobertas científicas que desafiam as concepções que perduravam por aproximadamente 2 mil anos. Já tratamos (superficialmente) da revolução científica na modernidade.
O que acrescentamos aqui é a relação de novas concepções científicas que influenciavam o pensamento de Descartes, os quais Franklin Leopold e Silva sinaliza:
- A concepção de um universo infinito e descentralizado de Giordano Bruno, em 1.584;
- A publicação da obra “Do magnetismo”, do inglês Gilbert, no mesmo ano em que Giordano Bruno foi queimado;
- A lei do movimento elíptico dos planetas em torno do Sol, de Kepler, em 1.605;
- A comprovação da teoria de Copérnico pela luneta de Galileu, que evidencia um universo não perfeito, como prova as manchas solares e as montanhas da Lua.
Além dos progressos em física, considera também:
- Os trabalhos matemáticos de Napia e Clavius;
- A obra de Willian Harvey sobre a circulação do sangue, em 1.628.
Por serem os principais responsáveis pelo abandono do sistema aristotélico, estes avanços científicos ocasionaram uma separação entre o saber filosófico e o saber científico.
Assim,
“A tarefa de Descartes será a de refazer o caráter sistemático do saber, unindo novamente ciência e filosofia, física e meta-física. E para pensar essa nova fundamentação ele conta com uma concepção de Galileu que está implícita na nova física, e que é formulada pelo astrônomo em sua obra O ensaiador: a natureza está escrita em linguagem matemática”.
(SILVA, F. L., 2.003, pg. 22,23)
Partindo da concepção galilaica, Descartes tentará encontrar os novos fundamentos para o conhecimento não apenas da natureza, mas também de Deus e da alma. Concepção esta cujo aspecto principal consiste em extensão do modelo de conhecimento matemático a todos os objetos.

II.B. SOBRE RENÉ DESCARTES: (Baseado nos escritos de Ethel Menezes Rocha)

René Descartes nasceu a 31 de março de 1.596 em La Haye, uma pequena cidade no distrito francês de Touraine, chamada La Haye – Descartes a partir de 1.802, e veio a falecer em Estocolmo, na Suécia, a 11 de fevereiro de 1.650. Seu pai era conselheiro no Parlamento e proprietário de terras, e sua mãe morreu 19 meses após seu nascimento, tendo sido, a partir de então, criado por sua avó materna. Aos 10 anos, foi enviado ao colégio Jesuíta de La Flèche, perto de Le Mans.
Em 1.611, iniciou seu primeiro ano de estudos em Filosofia, cujo núcleo de ensino era, sobretudo, a filosofia escolástica aristotélica.
Ao deixar La Flèche, Descartes viaja pela Europa e serve como voluntário nos exércitos holandês e bávaro, para “conhecer a verdade, a partir do contato com o mundo”. Em novembro de 1.616 Descartes se muda para a Holanda, onde encontra e inicia uma intensa colaboração com Isaac Beeckman, matemático e físico.
Durante o ano de 1.619, Descartes formula o que seria sua máxima ambição de vida: produzir uma ciência da natureza de acordo com os princípios matemáticos e mecanicistas. Em viajem pela Alemanha, começa a formular sua teoria geral do método e, na noite de 10 de novembro, uma série de sonhos lhe pareceu indicar a aprovação divina a esse seu projeto.
No período entre 1.620 e 1.626, Descartes tem encontros regulares com Mersenne, que advogava o mecanicismo como fundamento da nova física, e com o matemático Johannes Faulhaber que, diferentemente de Beerkman, concebia seu próprio projeto como mais amplo do que apenas uma ciência da mecânica, visão que Descartes compartilhava. Em 1.626, se muda para a Holanda, onde vive, com algumas breves interrupções, até 1.649. Durante esse período, em 1.643, o Cônsul de Utrecht condena a filosofia de Descartes, ameaçando a queima pública de seus livros. Em 1.647, Descartes é condenado por Revius e outros teólogos na Universidade de Leiden.
No final de fevereiro de 1.649, mudou-se para Estocolmo convidado pela Rainha Cristina, morrendo um ano depois.
PRINCIPAIS OBRAS E ESCRITOS:
- Regras para a direção do espírito (1.626 – 1.629)
- O mundo e Tratado sobre o homem (1.638)
- Discurso sobre o método (1.632)
- Ótica, Geometria e Meteorologia (1.637)
- Meditações Metafísicas (1.641)
- Objeções e Respostas (1.641)
- Em busca da verdade (provavelmente 1.642)
- Princípios da Filosofia (1.649)
- Notas contra um certo programa (1.647)
- As paixões da Alma (1.649)
- Conversações com Burman (1.648)

II.C – O DISCURSO DO MÉTODO:

O Discurso do método, embora fosse a primeira obra publicada por Descartes, não foi a primeira a ser escrita. Em 1.628 começou a escrever a “Regra para a direção do espírito”, e em novembro de 1.633 pensou em publicar “O mundo ou Tratado da luz”. Assustado pela ocasião da condenação de Galileu, Descartes decide renunciar à publicação de seu livro.
Em 1.637, Descartes publica o Discurso do método. Dentre as inúmeras razões aparentes que poderiam ter levado Descartes a tomar a decisão de publicar o Discurso, J. M. Fateaud elege três principais sendo a terceira a mais importante:
1ª – Por Questões de Reputação. Descartes quer aceitar os desaqfios que a obra lhe apresenta e, neste sentido, escreve o Discurso para mostrar do que é capaz;
2ª – Para despertar algum interesse por seus trabalhos;
3ª - Para “sondar o terreno”, ou seja, preparar o caminho para a publicação do “tratado de luz” ( FATEAUD Apud: Discurso do Método, Martins Fontes, 2.001, pg XX).
Convém citar:
“[...] Como se vê, uma tática perfeitamente clara: o Discurso deve despertar em alguns a vontade de conhecer o mundo, a ponto de intervirem junto ao Santo Ofício para permitir a Descartes publicá-lo sem perigo” (Ibdem, pg. XXI).
Fateaud observa que ainda que esta manobra audaciosa de Descartes tenha fracassado, não podemos perdê-la de vista quando lemos o Discurso, pois ela esclarece muitos de seus aspectos.
Embora o título do livro apresente uma aparente promessa de “explanação sobre o método”, o Discurso contém vários elementos inesperados, dentre os quais uma narrativa sucinta da carreira do autor, e um esboço bastante amplo de sua doutrina.
Fateaud aposta na possibilidade de esclarecer a intenção de Descartes ao escrever o Discurso do Método para entender a forma como foi organizado. Para tanto, traz duas citações de Descartes, nos quais acredita serem reveladores a este respeito:
“[...] meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha”.
(Discurso do Método, pg.7).
“[...] não ponho Tratado do método, e sim Discurso do método, o que é o mesmo que Prefácio ou Advertência sobre o método, para mostrar que não tenho intenção de ensiná-lo, mas somente de falar sobre ele. Pois, como se pode ver pelo que exponho sobre ele, consiste mais em prática que em teoria, e chamo os ensaios que vêm depois de Ensaios deste método, porque pretendo que as coisas que contêm não poderiam ser encontradas sem ele, e que através delas podemos reconhecer o que ele vale; assim como inseri alguma coisa de metafísica, de física e de medicina no primeiro discurso, para mostrar que o método estende-se a todos os tipos de matérias”.
(Carta a Mersenne de março de 1637 Apud: Prefácio do Discurso do Método, Martins Fontes, 2001, pg. XXV – grifo nosso).
Baseando-se nestas duas citações, Fateaud faz considerações sobre o Discurso do Método, as quais pretende-se neste trabalho apenas citar, conforme segue-se:
- Na primeira citação, sobressai claramente que a intenção do Discurso não é didática, e sim narrativa;
- A segunda citação especifica que não se deve esperar do Discurso um tratado, ou seja, que o objetivo de Descartes não é expor seu método, mas chamar sobre ele a atenção de quem lerá os Ensaios (Dióptrica, Meteoros e Geometria) que o seguem;
- A intenção dominante da obra é, no sentido estrito do termo, apologética;
- a finalidade do Discurso não é, realmente, analisar os principais aspectos do método, mas sugerir seus métodos.
O Discurso do Método – “Para bem conduzir a Razão e procurar a verdade nas ciências”, está dividido em seis partes:
1 – Considerações sobre a Ciência;
2 – Principais Regras do Método;
3 – Regras sobre a Moral;
4 – Fundamentos da Metafísica;
5 – Física, Medicina e a Alma Humana;
6 – Coisas necessárias para se ir além nas investigações.
Assim, a organização do Discurso do Método sugere a seguinte distinção:
1 – Ciências;
2 – Regras Gerais;
3 – Regras Morais;
4 – Metafísica;
5 – Física-Alma humana;
6 – Natureza-Razão.
Por ocasião da singeleza deste trabalho e outras limitações, nos atentaremos apenas à segunda parte do Discurso do Método.
II.D – O MÉTODO CARTESIANO:

Na segunda parte do Discurso do Método, Descartes começa a explanar o seu método, iniciando por estabelecer que o bom-senso (capacidade de distinção entre o falso e o verdadeiro), citado na primeira parte, só é possível de ser aplicado quando as coisas são feitas por uma só mente, e não por várias.
Propõe, em seguida, partir de uma “dúvida metódica”, com o objetivo de reformar os próprios pensamentos e construir um “terreno todo seu”.
Considera a lógica e ciências de origem escolástica como “confusas”, meramente “abstratas”, aparentemente “inúteis” e “restritas à considerações de figuras que fatigam muito a imaginação”. (Discurso do Método, pg. 27). Sendo assim, resolve propor para si mesmo quatro regras “firmes” e “constantes”, que substituirão o grande número de preceitos que a lógica é composta, para guiar sua busca da verdade:
A primeira regra era de “nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal”;
A segunda regra consistia em “dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fossem possível e necessário para melhor resolvê-las”;
A terceira regre pretendia “conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como degraus, até o conhecimento dos mais compostos”.
E a última regra consistia em “fazer enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que estivesse certeza de nada omitir”. (Ibdem, pg. 23).
Desta forma, podemos enumerar o Método de Descartes da seguinte forma:
1ª Regra: Clareza e Distinção.
2ª Regra: Análise.
3ª Regra: Ordem.
4ª Regra: Enumeração.
Franklin Leolpoldo e Silva considera, em relação ao Método cartesiano que:
- A primeira regra supõe duas atitudes daquele que busca a verdade: De um lado, deve evitar a prevenção, e de outro, evitar igualmente a precipitação;
- a segunda regra pressupõe a anterioridade dos elementos simples sobre as composições;
- A terceira regra é a que permitirá a dedução como forma de ampliar o saber;
- Finalmente, o preceito da enumeração pode ser visto, em parte, como síntese, já que percorre em sentido inverso o caminho percorrido pela análise, numa recuperação da visão de totalidade do conjunto.
(SILVA, 1.993. pg. 31)
Para concluir esta parte, citamos uma consideração de Ethel Menezes Rocha:
“Ao pretender explicar as condições de conhecer o ser, o método cartesiano desloca o enfoque de uma teoria o objeto para uma teoria da constituição do saber. Entretanto, além dessa preocupação que é compartilhada com os pensadores do séculoXVII, Descartes pretende ainda ter elaborado um sistema filosófico abrangente, que envolve uma física, uma lógica e uma meta-física, de moda a substituir a doutrina aristotélica”.
(ROCHA, E.M. apud: PECORARO, R. Clássicos da Filosofia, 2008, pg. 215).

PARTE III: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao discorrermos sobre os fatores que propiciaram o surgimento do período Moderno, pudemos ver como a filosofia cartesiana é fruto de seu tempo. A necessidade de romper com a tradição escolástica/aristotélica, para instaurar um “novo”, para acolher a emergência de concepções que propõe não uma superação, mas uma negação dos valores da tradição, marca a ciência de seu tempo.
René Descartes torna o “ceticismo instrumental” como ponto de partida de sua filosofia, para ir ao encontro da “Mathesis Universalis”. Esta influência da redescoberta do ceticismo antigo, característico de sua época, levou Descartes a se defrontar com a impossibilidade da “dúvida da dúvida” – “Cogito, ergo sun”, anuncia seu retorno da jornada cética.
O ceticismo em Descartes não é um fim em si mesmo. Muito pelo contrário, é o ponto de partida para o conhecimento da verdade. Sua filosofia do Cogito está imbuída do espírito de sua época. Como Descartes fundamenta sua existência? Ora, se penso, logo existo. Como pôde chegar à esta conclusão? Utilizando seu método “para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências”.
Descartes parte em busca do conhecimento da verdade sem se preocupar com a questão da possibilidade de a razão humana acessar esta verdade. Ao propor o Método, Cartesius “baila na sinfonia do zeitgeist”. A crítica à possibilidade e limite do conhecimento da razão é o “topos” da filosofia de Immanuel Kant, no século XVIII.
Contudo, René Descartes não foi simplesmente resultado da influência de seu período, foi também influenciador.
Se o humanismo Renascentista fazia parte do espírito de seu tempo, foi em Descartes que se obteve seu ápice. Juntamente com os físicos e cientistas de sua época, Descartes foi o emancipador da razão humana. Nele encontramos os fundamentos do método científico, presente até hoje nas cátedras acadêmicas.
O nascimento da Ciência Moderna se deu na confluência de duas correntes epistemológicas: O Racionalismo e o Empirismo. Nas bailas da dedução, da análise e da síntese, ambas correntes epistemológicas se assentam no mesmo solo epistêmico da representação antopocêntrica.
Ao trazer o homem para o centro, rompendo com a tradição teocêntrica medieval, o cientista moderno se defronta com o desafio de explicar o funcionamento tão complexo de um cosmos que agora se descobre infinito, descentralizado e não-perfeito (Universo). Influenciados pela invenção do relógio, surge a concepção mecanicista do mundo.
Podemos considerar Descartes o ápice do pensamento moderno. Em sua filosofia, podemos enxergar exatamente os pressupostos da cosmovisão de seu tempo (ruptura com a tradição escolástica, valorização do indivíduo, o homem como centro e a visão mecanicista do mundo), porém, muito mais que síntese do espírito de seu tempo, René Descartes foi o emancipador da razão humana, um divisor de águas, instaurador da “razão instrumental”, tão cara à Ciência Moderna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

DESCARTES, René. Discurso do Método. Martins Fontes, São Paulo: 2.002, 3ª Ed.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia Moderna: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zohar Ed. 2.006.
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2.004, pg. 297-309.
PECORARO, Rossano (org). Os Filósofos - Clássicos da Filosofia: vol.1. Ed. Puc-Rio, Rio de Janeiro: 2008.
SILVA, F.L. Descartes: a metafísica da modernidade. Ed. Moderna, São Paulo: 1993.

CiberCu(ltu)r@: Para além de uma hermenêutica “ciber’apocalíptica” ou “ciber’soteriológica” da cultura das mídias.

POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes


INTRODUÇÃO

            Este trabalho tem por objetivo realizar uma abordagem que podemos considerar como “panorâmica” sobre algumas questões pertinentes à cibercultura, que nos propiciará um exercício de reflexão filosófica sobre o universo das relações interpessoais no ambiente virtual, dos sites de relacionamento, das redes sociais e dos simuladores de vida, dentre outros fenômenos emergentes no bojo do que se convencionou denominar (com fins latentemente mercadológicos) “internet 2.0”.
            Pretendemos, embasados em três autores distintos, realizar um percurso preliminar que vai do conceito de cibernética (Helmar G. Frank), passando por uma análise crítica da cultura digital (Lúcia Santaella), que por sua vez culminará em uma série de considerações e inferências sobre temas e conceitos pertinentes à cibercultura (Pierre Levy), dentre os quais estão o conceito de “ciberespaço”, a definição do conceito de “virtualidade” e a adequação ou não do termo “multimídia” para referir-se a uma rede digital integrada.
           

I – O CONCEITO DE CIBERNÉTICA

Segundo o dicionário Aurélio, cibernética é a ciência que estuda as comunicações e o sistema de controle nos organismos vivos e também nas máquinas.
Helmar G. Frank em seu livro “Cibernética e Filosofia” considera o conceito de cibernética amplo, pois distingue-se entre as concepções de especialistas, heuristas e ideólogos (FRANK, 1970. pp. 20). Cabe-nos, por ora, transcrever aqui algumas citações de diferentes autores, que Frank menciona em seu livro:
Citando Schmidt,
“A cibernética é a construção de sistemas técnicos tendo como alvo objetivar no mundo físico nossa relação básica psico-física para com a natureza” (Apud: FRANK: 1970. pp. 22).

            Para Norbert Wiener,
“todo o reino da teoria do comando e da transmissão de informações, quer seja em máquinas ou em seres vivos, pode ser denominada de cibernetics, termo formado da palavra grega kybernytys, timoneiro” (Ibdem).

            O problema na definição de Wiener se dá no fato de não estar claramente estabelecido o que pode ser constituinte da cibernética, se apenas os teoremas referentes à “forma de aparência orgânica”, ou somente os teoremas referentes à “técnica de máquinas de controle e processamento de dados”, ou somente o que for referente a ambos os campos. Sendo assim, Wiener explicou posteriormente que a cibernética como ele a entende
“não se ocupa nem primordialmente de organismos nem primordialmente de produtos técnicos, e sim daquilo que é comum a ambos. Isso corresponde à sua declaração [...] de que a problemática chamada [...] de ‘cibernética’ seria ‘centralizada não na eletrotécnica, mas no conceito muito mais fundamental da informação, quer ela fosse transmitida por meios elétricos, mecânicos ou nervosos’ “ (Ibdem, pp.21).

Se, por um lado, o conceito de cibernética (conforme dito anteriormente) pode ser considerado um conceito amplo, o autor propõe que se compartilhe da dedução de Bolzano (1849), que se utiliza do emprego lingüístico usual para se delimitar com maior clareza um conceito (Apud: FRANK: 1970 p. 23).
Assim, Frank cita Ducrocq (1959), que busca a origem da palavra “cibernética” o mais tardar no século VI antes de nossa era:
“[...] desde o século sexto antes do nascimento de Cristo ele (Teseu) foi venerado num culto particular. Todo ano festejava-se a lembrança da viagem de Teseu a Creta com bastante festas que se estendiam do sexto ao décimo-segundo pianepsião (outubro). Encontraram seu apogeu nos ‘cibernésios’, festas que glorificavam a arte da pilotagem e que eram comemoradas na noite do sexto dia; segundo a lenda, essas festas foram instituídas pelo próprio Teseu em homenagem aos dois pilotos do mar, Nausithoos e Faiax, que o conduziram a Creta e aos quais ele teria até erigido um santuário” (Ibdem).

Ducrocq defende que a palavra grega kybernítis foi de antemão empregada mais ou menos no sentido de “timoneiro”, mas que após um tempo, a palavra correspondeu a uma “divisão de trabalho mais minuciosa [que] pôde ser comprovada numa nova acepção, mais ou menos no sentido de ‘piloto do mar’ “ (Op. Cit. pp. 23).

“Em tempos mais antigos, o próprio piloto certamente manejava o leme, mas rapidamente surgiu a diferenciação de tarefas: no século II de nossa era foi usada por Plutarco a expressão ‘kybernetes’ para o condutor dos timoneiros; aqui portanto o piloto aparece como intermediário entre capitão e timoneiro” (DUCROCQ: 1959, p.5 Apud: FRANK, 1970 p.24).

Frank prossegue mencionando Guilbaud (1954), que salienta que a palavra “kybernytys” é um “mecanismo de retroação” de “governador”, palavra que etimologicamente provém do francês “gouverneur”, que por sua vez reporta-se ao latim “gubernator”, segundo ele um elenismo, cuja origem é então “kybernytys”. (FRANK: 1970 p. 24).
Para Heyde (1965) porém, o ponto central da cibernética (que lhe determina o nome e a orientação) é a problemática da objetivação de “um complexo geral de funções, que é ilustrado com o exemplo das funções do timoneiro e do piloto” ( Apud: FRANK: 1970, p. 24-25). Esta “problemática da objetivação” pode ser entendida no sentido estrito que atribuiu Schimidt, como “realização de uma função por uma máquina (objetivação técnica da máquina)”, ou num sentido mais geral como “realização dessa função pelos respectivos servoanimais (objetivação biotécnica), ou ainda pelo “trabalho conjunto organizado de homens especializados (objetivação sóciotécnica)”. Em ambos os casos, a tarefa “técnica” exigida é a de produzir, para uma função definida abstratamente, um sistema que a realizasse. No caso da cibernética, além dos três ramos da técnica supracitados, abrange também as disciplinas científicas correspondentes. (Ibdem).

Helmar Frank estabelece uma análise do trabalho de um homem que viaja só, num barco a remos para demonstrar a classe de funções que importa à cibernética:
1.      Estabelece um alvo para si mesmo. Com isso preenche a (generalizada) função de capitão.
2.      Observa a direção da viagem e seus desvios do rumo ideal e decide as modificações da rota que os corrigirão. Com isso preenche a (generalizada) função de piloto.
3.      Desempenha as modificações de correção decididas. Com isso preenche a (generalizada) função de timoneiro.
4.      Produz o trabalho físico necessário para atingir o alvo. Com isso preenche a (generalizada) função de remador. (Ibdem. p.25).

Na proporção em que o trabalho do remador altera o que o piloto observa, fecha-se no piloto um esquema em círculo passando por timoneiro, remador e ambiente. Até agora pudemos entender com as denominações “capitão”, “piloto”, “timoneiro” e “remador” as definições das funções que cabe à cibernética de um modo generalizado, ao passo que podemos atribuir às disciplinas matemáticas e às ciências naturais uma definição das funções da cibernética como termo geral para “piloto” e “timoneiro”.
A função de timoneiro é uma função de coordenação no sentido mais amplo: ele coordena à ordem do piloto um novo reajuste do timão.
“Tal ordem é, porém, uma mensagem ou mais exatamente, um sinal com função pragmática. Pode-se dizer portanto: a função de timoneiro (função de coordenação) consiste no fato de que, recebida uma mensagem, segue-se uma claramente determinada (re)ação sobre o mundo exterior” (Ibdem, p.26).

Em relação à função do piloto:
            “O piloto não realiza trabalho físico (como o remador), nem se encarrega diretamente da transformação de energia (como o timoneiro). Ele transforma antes a mensagem dada pelo capitão a respeito do alvo estipulado, o chamado valor-desejado, juntamente com as mensagens resultantes da observação do mundo exterior, o chamado valor-real, num programa que tem por sua vez também caráter de sinal.” (Ibdem).

Chegamos, com isto a um conceito de cibernética bastante amplo, que abrange tudo o que é dado como pertencente à cibernética por qualquer das atuais correntes, e depois por outro lado subdividimos a cibernética a partir de dois pontos de vista diferentes em disciplinas isoladas, concretizando-a.

PARTE II – A CULTURA DIGITAL

Lucia Santaella (2004), em seu livro “Culturas e Artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura”, considera o terreno sócio-cultural “fertilizado gradativamente” por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais, processos estes que ela define como “culturas das mídias”. Para compreender estes processos, divide o que ela chama de “eras culturais” em seis tipos de formações: “Cultura oral”, “cultura escrita”, “cultura impressa”, “cultura de massas”, “cultura das mídias”, e a “cultura digital” (SANTAELLA: 2004 p.13).
Sendo assim, Santaella considera que embora os meios de comunicação não passem de meros canais para a transmissão de informações, são capazes de moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos, bem como propiciar o surgimento de novos ambientes sócio-culturais, através dos tipos de signos que por eles circulam, os tipos de mensagens que engendram e os tipos de comunicação que possibilitam. As passagens entre as “eras culturais” não se dão apenas de modo sucessivo, mas em um complexo processo de cumulação e incorporação.
A fim de privilegiar apenas os objetivos deste trabalho, veremos algumas principais características presentes na “cultura das mídias” e na “cultura digital”, apresentadas por Santaella.
Lúcia Santaella considera a “cultura das mídias” uma cultura do “disponível e do transitório” (Ibdem, p. 15), emergente a partir da década de 80. Propiciam a escolha e consumo individualizados, em oposição ao consumo massivo, nos arrancando da inércia da recepção de mensagens impostas de fora e nos treinando para a busca da informação e do entretenimento que desejamos encontrar.
Já a “cultura digital” é considerada por Santaella como a “cultura do acesso”, pois a informação, diferentemente dos bens duráveis, não está necessariamente relacionada à “posse”, e sim na “replicabilidade”, ou seja, quando eu dou uma informação a alguém, esta pessoa possuirá a informação, porém eu não deixarei de tê-la também, diferentemente de quando eu forneço um serviço ou bem durável. Dessa forma, não se trata de questão de posse da informação, e sim de acesso.
Em termos conclusivos, Santaella diz sobre a cultura das mídias e a cultura digital:
“Enfim, cultura de massas, cultura de mídias e cultura digital, embora convivam hoje em um intenso caldeirão de misturas, apresentam cada uma delas caracteres que lhes são próprios e que precisam ser distinguidos, sob pena de nos perdermos em um labirinto de confusões. Uma diferença gritante entre a cultura das mídias e a cultura digital, por exemplo, está no fato muito evidente de que, nesta última, está ocorrendo a convergência das mídias, um fenômeno muito distinto da convivência das mídias típica da cultura das mídias. É a convergência das mídias, na coexistência com a cultura de massas e a cultura das mídias, estas últimas ainda em plena atividade, que tem sido responsável pelo nível de exacerbação que a produção e a circulação da informação atingiu nos nossas dias e que é uma das marcas registradas da cultura digital.” ( SANTAELLA: 2004, p.17).

A autora, citando Lunenfeld, diz que o computador “colonizou” a produção cultural, e citando ainda Rosnay, salienta que o que revolucionou a utilização do computador – de mera máquina de calcular que foi forçada a virar máquina de escrever em poucas décadas a uma máquina que cria, distribui e recebe uma vasta variedade de outras mídias – foi a informação distribuída em rede e o hipertexto (Ibdem, p. 20).
O impacto do computador sobre a cultura e a economia, diz Santaella embasando-se nas pesquisas de Heim, tem dividido os críticos em três tipos de reação:

 - OS REALISTAS INGÊNUOS: Para eles, os sistemas não pertencem à realidade, mas são uma supressão da realidade;
- OS IDEALISTAS INGÊNUOS: Embora falem a partir de vários medos ou preocupações, consideram o mundo das redes o melhor dos mundos e apontam para os ganhos evolutivos da espécie.
- OS CÉTICOS: Insistem em que o ciberespaço está atravessando um processo de nascimento muito confuso. Trata-se de um ceticismo que resulta em uma atitude de “deixar acontecer para ver como é que fica”. (Op. Cit. p. 22-24).

Concluímos este tópico mencionando a citação que Santaella faz da proposta de Heim, em estabelecer uma posição de dialética de um realismo virtual como posição mediadora entre o realismo ingênuo e o idealismo das redes, para podermos enfrentar os desafios do presente (Ibdem).


PARTE III – O CONCEITO DE CIBERESPAÇO, VIRTUALIDADE E MULTIMÍDIA.

Neste tópico, abordaremos de forma sucinta as considerações e definições que Pierre Lévy (2001) traz em seu livro “Cibercultura”, que consideramos importantes de serem mencionadas neste trabalho.

1.      O QUE É O CIBERESPAÇO:

Segundo Pierre Levy, a palavra “ciberespaço foi inventada em 1984 por William Gibson em seu romance de ficção científica “Neuromante”. Segundo o autor, o ciberespaço de Gibson torna sensível a geografia móvel da informação, normalmente invisível. (LEVY: 2001 p.92).
            Citamos a definição de Levy sobre o ciberespaço:
            “Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização” (Ibdem).

2.      O QUE É VIRTUAL:

Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atualização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou formal (a árvore está virtualmente presente no grão). Assim, no sentido filosófico o virtual é uma dimensão muito importante da realidade.
Pierre Lévy cita uma lista com diferentes sentidos do termo “virtual”:

- Virtual no sentido comum: Falso, ilusório, irreal, imaginário, possível.
- Virtual no sentido filosófico: Existe em potência, e não em ato, existe sem estar presente.
-Mundo virtual no sentido da possibilidade de cálculo computacional: Universo de possíveis calculáveis a partir de um modelo digital e de entradas fornecidas por um usuário.
- Mundo virtual no sentido do dispositivo informacional: A mensagem é um espaço de interação por proximidade dentro do qual o explorador pode controlar diretamente um representante de si mesmo.
- Mundo virtual no sentido tecnológico estrito: Ilusão de interação sensório-motora com um modelo computacional. (Ibdem, p.74).

A cibercultura encontra-se ligada ao virtual de duas formas: Direta e indireta.
DIRETA: Inacessível ao ser humano imediatamente;
INDIRETA: Está alocado em um espaço físico (i.e. Hardware).

            “O virtual não substitui o real, ele multiplica as oportunidades para atualizá-lo” – Pierre Lévy.

3.      MULTIMÍDIA” OU “UNIMÍDIA”?

Para Lévy, o termo multimídia significa, em princípio, aquilo que emprega diversos suportes ou diversos veículos de comunicação, sendo corretamente empregado quando, por exemplo, o lançamento de um filme dá lugar, simultaneamente, ao lançamento de um vídeo game, exibição de uma série de televisão, camisetas, brinquedos, etc. . Neste caso, estamos de fato frente a uma “estratégia” “multimídia”. Mas se desejamos designar de maneira clara a confluência de mídias separadas em direção à mesma rede digital integrada, deveríamos – segundo Lévy- usar de preferência a palavra “unimídia”. O termo multimídia pode induzir ao erro, já que parece indicar uma variedade de suportes ou canais, ao passo que a tendência de fundo vai, ao contrário, rumo à interconexão e à integração. (Ibdem, p.63-35).

PARTE IV - CONCLUSÃO

A cibercultura propicia-nos uma concepção paradoxal dos relacionamentos sociais. Ao mesmo tempo em que diminui os espaços entre pessoas, estabelece outros, ao mesmo tempo em que estabelece o acesso ao diferente, o próprio “acesso” a este diferente é único e particular em seus muitos meios. Na medida em que o acesso “virtualmente mediatizado” coloca-nos em contato com um Universo inteiro em apenas um clique no mouse (sim, posso ter acesso ao Universo com o “Google Earth”), nesta cultura onde o espaço físico não se impõe mais como limite, cada vez mais aumenta o universo subjetivo e abstrato nos indivíduos que, com o apelo massivo do consumismo capitalista tornam-se depressivos e neuróticos com mais freqüência.
Será esse um preço a pagar pelo desenvolvimento tecnológico? A aproximação física em detrimento da proximidade humana? Ou a potencial incerteza desdobrada em perguntas cada vez mais difíceis de se responder, na medida em que respostas vão surgindo com a tecnologia? Como pudemos ver nas análises de Santaella, há quem aposte no “Armagedon”, e quem aposte da “Nova ‘ciber’-Canaã”. Há também quem não aposte.
Certamente, o filósofo não pode deixar as questões de seu tempo “ao ver no que vai dar para ver como é que fica”, e, podemos adiantar que assumir uma posição apocalíptica ou soteriológica da cibercultura, pode culminar no que Heim classificou como posição “ingênua”, ou no que podemos inferir como saudosismo proselitista.
Seria de fato ingênuo de nossa parte apostar em uma “ciber-cura”, posição esta onde transferimos toda nossa necessidade de “ordem”, “coerência” e “significado” em uma tecnologia emergente, como se olhássemos para a cibercultura enquanto um Tótem, à espera de que os avanços tecnológicos nos digam quem somos, e determinem o que devemos ser. Já aprendemos, no desenrolar da História, a não apostar todas as fichas em um único jogo.
Porém, ficarmos na defensiva do que o novo pode nos proporcionar é de longe a pior posição a se assumir. Com a transcendência cibernética do espaço propiciado pela cibercultura, o acesso à informação proporciona um verdadeiro Boom do saber, onde as concepções se tornam naquilo que Zigmunt Bawman pertinentemente denominou de “líquida”. Frente a essa liquidez, somos tomados por uma sensação de aceleração dos tempos, parece-nos que o tempo “passa cada vez mais rápido”, o que inevitavelmente nos impele a um saudosismo, concebendo sempre a “nossa época a melhor”, “o nosso jeito de fazer as coisas o melhor”, e consequentemente o “jeito certo”.
Assim, resta-nos subsumir esta (ciber)realidade que se nos apresenta, com otimismo “exorcista”, que nos liberta de certos fantasmas, porém, sem nos deixar de manter reservas ... Será o paradoxo inerente à cultura das mídias um preço a se pagar pelo avanço tecnológico? Será uma libertação de nossa condição humana ou afirmação? Como cita Pierre Lévy, apenas “atualização do que somos em potência”. Do ato à potencia – permitamo-nos prosseguir (com) nossa (ciber)humanidade ...


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Miniaurélio o dicionário da língua portuguesa. Ed. Positivo, novembro de 2008.
FRANK, Helmar G. Cibernética e Filosofia. Ed. Tempo brasileiro. Rio de janeiro: 1970.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Ed. 34. São Paulo: 2001. 1ª reimpressão.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. Ed. Paulus. São Paulo: 2003. 2ª edição, 2004.

A ESTÉTICA EM LONGINO: O TRATADO SOBRE O SUBLIME

POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes



Longino, ou pseudo-Longino - posto que seu nome real é desconhecido - , era um professor de retórica ou crítico literário que pode ter vivido entre o século III a.C. e o século I. Esta obra (O Tratado sobre o Sublime) é comumente atribuída a ele, mas há divergências entre os historiadores da filosofia. A divergência se dá pela assinatura do tratado presente no documento original, onde não pode-se distinguir entre “Dionísio Longino” ou a disjunção “Dionísio ou Longino”. Assim, os historiadores da filosofia divergem a respeito da atribuição desta obra, sendo três as hipóteses mais comuns: Dionísio de Halicarnasso (do século de Augusto); Cassio Longino, amigo de Plotino no séc. III d.C; ou um personagem desconhecido chamado Dionísio Longino.
            Levando-se em conta que tal divergência não está resolvida, costuma-se atribuir a autoria do tratado à “pseudo-Longino”, utilizando como possível data o período entre 213 a 273 d.C.
            Longino não entende o Sublime como “estilo”, mas sim como “atitude”, e seu tratado tem como objetivo discutir a essência do Sublime, ou seja, a essência dessa atitude.
            Longino inicia seu tratado a partir da seguinte questão: até que ponto é possível estimular nossos dons naturais? Para tanto, problematiza a relação da natureza com a arte, isto é, com a técnica.
            Na criação há natureza e técnica, e é preciso pensar em seu necessário encontro. Esta relação não pode ser pensada de um modo sucessivo (um após o outro), mas sim em ato. Aqui, a natureza é tida enquanto dom inato ou talento, e a técnica o trabalho. A essência do Sublime está no impulso realizado nas obras, ou seja, “é uma questão de fronteira, de passagem entre o inato e o adquirido, dom e técnica, ‘avatar’ da oposição entre physis e nomos, a natureza e a norma, o dom biológico e a regra”.
            Como, então, estimular nossos próprios dons naturais para a grandeza (sublime)? Longino estabelece a educação como “espécie de violência reguladora”, “pelo freio e pelo aguilhão”, como processo necessário para o Sublime.
            Para Longino, a natureza é “autonomos”, ou seja, dá leis a si mesma. Porém, pode ser que esta norma da natureza não seja suficiente, e neste caso, a técnica pode agir sobre ela. Desta forma, a natureza não se entrega ao acaso, mas pode se apresentar no “método”.
            O método deve vir do exterior, da ciência e da prática. A natureza fornece a matéria da produção, o método estabelece a quantidade e o tempo (kayrós, a “ocasião”). O kayrós é uma medida, mas não depende do número, da quantidade; ele nasce da apreciação, do olhar prático e da natureza das coisas. O encontro do dom com a técnica faz do kayrós a medida do qualitativo.
            O Sublime tem dois critérios: ética e universalidade.
            O critério ético: “Nenhuma coisa cujo desprezar tenha grandeza é grande”. Não se trata de um desprezo geral, mas do esforço de alguém que, em condição de aceitar, recusa. Este critério permite operar a separação entre o essencial e o acessório.
            O critério da universalidade: “É seguramente e verdadeiramente sublime o que agrada sempre a todos”. Da discordância nasce algo que é da ordem da inteligência e da razão, que pode se definir em termos de julgamento (krisis) e assentimento (sygkatáthesis). O julgamento e o assentimento são operações da razão que levam à ciência.
            O Sublime ocorre a partir de duas fontes da natureza, e das figuras por parte das artes (a figura é a ocasião da presença). As duas fontes do Sublime que dependem do dom natural são:
·         Uma vigorosa apoderação dos pensamentos (conceitos);
·         Uma paixão violenta, que leva para fora de si (paixão).
Longino descreve que é preciso educar a alma em direção à grandeza (grandeza da natureza: megalophués); o Sublime é o eco da grandeza na alma (grandeza da alma: megalophrosýne). Desta relação, infere três conclusões:
·         O Sublime pode ser aquilo que não se diz, que não se enuncia, mas com que se pode ter contato;
·         O pensamento pode determinar o dom natural (pela educação);
·         O Sublime só pode ser representado por exemplos (figuras, metáforas).
No decorrer de seu tratado, Longino ainda discorre sobre três conceitos, a saber, amplificação, imitação e aparição:
·         Amplificação (aúxesis):
Os retóricos definem vagamente a aúxesis como “algo que acrescenta grandeza”. A diferença entre o Sublime e a amplificação é que o Sublime reside na elevação (qualitativo), e a amplificação reside no número (quantitativo).
·         Imitação (mímesis):
Longino aceita (e até reivindica) a ideia da inspiração, porém, não a atribui aos deuses ou musas, mas coloca no âmbito da imitação. Esta, para Longino, não é o sentimento comum da “reprodução de um objeto ou de um efeito”, mas a faculdade de eleição e admiração. Assim, a imitação não é uma origem, mas um meio.
·         Aparição (phantasía):
Toda percepção é aparição, e todo pensamento é visão; pensar é ver. Só se pode fazer ver se já se viu. A imaginação, para Longino, é a “capacidade de receber do exterior ou de si mesmo visões, e de estar no ponto de impô-las, na sua ingenuidade e na sua violência ao olhar de alguém”. Assim, a aparição do Sublime não está na figura estanque e inerte, mas no exercício de “fazer ver” o que não se vê, pela linguagem, pela metáfora.

Do capítulo XVI em diante, Longino compara a poesia com outras artes, com a finalidade de mostrar a superioridade da poesia e da prosa sobre as outras artes (pintura, música e estatuária).
Podemos concluir, finalizando, que o Sublime de Longino é “violência que desequilibra, um choque”. O choque surpreende o julgamento e faz-nos sair de nós mesmos, mergulha-nos no êxtase. O Sublime leva sempre a ultrapassar a medida, porém, quando a desmedida é bem sucedida, deve impor sua norma. O Sublime, então, é o encontro entre a natureza e o trabalho, a violência e a figura na ocasião.
“O Sublime de Longino é uma estética sem ilusão, mas que conserva a fé e que persiste em dá-la” (Filomena Hirata).

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
LONGINO. Do Sublime. Tradução de Filomena Hirata; Editora Martins Fontes, 1ª edição. São Paulo: 1996.