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"É necessário saber perder tempo para comprometer-se nas lutas dos povos periféricos e das classes oprimidas. É necessário saber perder tempo em ouvir a voz de tal povo: suas propostas, interpelações, instituições, poetas, acontecimentos... É necessário saber perder tempo, no curto tempo da vida, em descartar os temas secundários, os da moda, superficiais, desnecessários, os que nada têm a ver com a libertação dos oprimidos." - Enrique Dussel

sexta-feira, 29 de março de 2013

O PROCEDIMENTO GENEALÓGICO: “ANÁLISE INTERPRETATIVA DA DESCONSTRUÇÃO DO KÓSMOS E A INVENÇÃO DO UNIVERSO COMO LUGAR DE EMERGÊNCIA DA IDADE MODERNA”


I - AS CARACTERÍSTICAS DO PROCEDIMENTO GENEALÓGICO:

“Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de crer na metafísica, o que ele aprende? Que por trás das coisas há algo ‘completamente diferente’: não absolutamente seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que elas são sem essência ou que a essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas [...] O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada de sua origem – é a discórdia entre as coisas, o disparate”.
(FOUCAULT, Michel, “Nietzsche, a Genealogia e a História” in: Ditos & Escritos II – Arqueologia das ciências e História dos Sistemas de Pensamento, p. 262-263).

O procedimento genealógico se contrapõe à história “continuísta e linear”, no sentido de que se estabelece como análise das descontinuidades. Diferentemente da história, a genealogia toma como objeto de estudo a singularidade dos acontecimentos, ao passo que a história tem como objeto de estudo a descoberta da origem. Portanto, antes de tratarmos do procedimento genealógico propriamente dito, analisaremos as características da pesquisa historiográfica.
A pesquisa historiográfica se estabelece a partir da crença na origem como mito fundador, procurando traçar uma lenta curva evolutiva, estabelecida por um método nivelador que estabelece vínculos continuístas entre acontecimentos, negando-lhes a singularidade, numa cadeia evolutiva instauradora de verdades meta-históricas, portanto, metafísicas.
O método historiográfico, enquanto pesquisa da origem, compromete-se em buscar a essência exata das coisas, empenha-se para captar o que está por trás das coisas, sua “identidade primeira”, estando portanto certos de que a origem das coisas estavam “antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo: está do lado dos deuses ... “ [FOUCAULT, 2000,p.263].
Podemos assim resumir o processo historiográfico na definição de que ao buscar a origem das coisas, estaria buscando o lugar da verdade, ou seja, a verdade propriamente (e metafisicamente) dita. Para tanto, estabelece um discurso que acaba por assumir este mesmo caráter de verdade incontestável.
Já o processo genealógico detém-se nas meticulosidades e nos acasos dos acontecimentos, desconstruindo a concepção evolutiva e linear da história:
1 – capturando a emergência de um conceito ou de uma teoria, de uma prática institucional;
2 – Analisando sua proveniência (de onde provêm, com que forças estabeleceram relações);
3 – Reconhecendo sua prática inventiva.
Foucault assim estabelece uma “cartografia”dos conceitos na obra de Nietzsche:
1 – Proveniência;
2 – Emergência;
3 – Invenção.
A proveniência busca “descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar e formar uma rede difícil de se desembaralhar.”(Ibdem, p.265). Ela se contrapõe à tentativa da análise das origens de “descobrir” ou estabelecer categorias de semelhanças, pelo contrário, procura situar os acidentes, reconhecer os hiatos, manter o passado na sua “dispersão que lhe é própria” (Ibdem).
Já a emergência busca o “ponto de surgimento”, o princípio singular de um acontecimento, que se dá em um determinado estado de forças. Enquanto a proveniência diz respeito às forças estabelecidas numa dada relação, a emergência, por sua vez, diz respeito ao “que se dá a ver”.
Ora, se a história é constituída de descontinuidades, de emergências de acontecimentos nas relações de forças, traçar uma linha ordenatória, hierarquizada e progressiva na história é violentá-la, pervertê-la, burlar-la à vontade de cada um, por dominação. Assim, quanto mais fazemos este tipo de história, mais nos afastamos das próprias coisas, para muito longe da sonhada “origem”. A busca pela “essência” das coisas remete à “origem”, ao passo que a busca pelo “sentido” da coisa remete à invenção. Neste sentido, Nietzsche prefere o termo invenção no processo genealógico, ao termo “origem”, pois no processo genealógico busca-se estabelecer como se dá o processo de significação das coisas, sem meros juízos de causa e efeito, mas nos discursos, nas interposições de sentidos, organizando os meros acasos que produziram juízos, regras e verdades. Na história continuísta, a busca pela origem é a busca pela significação de todo agir e pensar.
Em síntese, o procedimento genealógico busca:
Fixar e compreender a espécie de valoração atualmente dominante;
Definir como sintoma o código moral de uma época pouco determinada;
Estabelecer a história do surgimento dos modos dominantes de juízo moral;
Fazer a crítica do valor dos valores. 

Três eixos principais da pesquisa genealógica:
1 – Traçar a “história dos domínios do saber em relação com as práticas sociais, excluída a preeminência de um sujeito de conhecimento dado definitivamente;
2 – Considerar a análise do discurso como “jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta”;
3 – Construir uma reelaboração da teoria do sujeito.

Ao contrário da história das origens, que vê a própria história como uma duração, o processo genealógico parte de uma compreensão da história como “multiplicidade de tempos que se emaranham e se envolvem uns nos outros.” (FOUCAULT, 2000. p.293).
Finalizando, o procedimento genealógico rompe com os paradigmas hegemônicos na historiografia, que silenciam outras verdades, bem como torna latente e visível o hiato negável no discurso histórico, entre o visível e o enunciado.


II - CARTA DE GALILEU A FORTUNIO LICETI E "DO MUNDO FECHADO AO UNIVERSO INFINITO" DE ALEXANDRE KOYRÉ: UMA ANÁLISE INTERPRETATIVA.


Galileu foi um instaurador de descontinuidades. Da ciência contemplativa à ciência prática, do cosmos fechado ao universo infinito, da concepção aristotélica do espaço à concepção geométrica euclidiana. Desloca a concepção aristotélica medieval de ciência para o platonismo humanista renascentista.
Koyré, como um analista de descontinuidades, defende a tese de que a revolução científica moderna nasceu na Itália, mesmo na Pré-renascença, com Petrarca, Maquiavel, Nicolau de Cusa e Cesalpino. Com pequenas rupturas, num processo lento e profundo, vão se configurando investidas contra a filosofia escolástica e a ciência aristotélica, realizando verdadeiros abalos sísmicos na estrutura medieval. Aqui, não se trata mais de uma questão de equilíbrio ou ordem perfeita, de virtude ou santidade, mas da assunção do sujeito moderno como o “grande leitor da linguagem da natureza”, apto a interpretá-la, a pô-la em análise, agora num conhecimento dinâmico, não mais contemplativo (portanto estático):

“Trata-se da substituição do teocentrismo medieval pelo ponto de vista humano; da substituição, pelo problema moral, do problema metafísico e, também, do problema religioso; da substituição do problema da salvação pelo ponto de vista da ação. [...] o tão dominante é que a velha lógica linear não o prende mais; que o velho Cosmos, bem ordenado e bem hierarquizado, não é mais o seu universo; que os enquadramentos do pensamento metafísico – forma e matéria, ato e poder – se esvaziaram, para ele, de um conteúdo vivo. Seu Universo é, ao mesmo tempo, mais um, menos determinado, mais dinâmico, mais atual.” (KOYRÉ, 1991, P. 18 e 19).

Koyré descreve, então, como através de figuras importantes como Ficino, que foi um tradutor de Platão na modernidade, Copérnico que defendeu o heliocentrismo, Giordano Bruno, que arriscou fazer inferências filosóficas a partir das teses de Copernico, sendo um dos pioneiros na concepção do universo infinito, dentre outros como Kepler, foram estabelecendo rupturas na antiga concepção medieval – aristotélica – escolástica, na concepção do mundo como um todo finito, bem ordenado e perfeito, bem como na concepção aristotélica do movimento enquanto estado natural das coisas, numa hierarquização de substâncias que legitimariam a concepção de intramundos, lunares e sublunares.
Em síntese, o que está evidente na carta de Galileu é a instrumentalização da matemática, como conhecimento do Universo, pois como ela é a “linguagem pelo meio da qual a natureza fala”, é necessário que aprendamos a ler corretamente esta linguagem (geométrica euclidiana). Por último, pode-se destacar que os argumentos centrais desenvolvidos por Koyré estão localizados na concepção da destruição do cosmo e na geometrização do espaço, como rupturas no solo epistêmico medieval, que permitiram a emergência do sujeito moderno.

BILBIOGRAFIA:


FOUCAULT, M. "Retornar à História” e "Nietzsche, a genealogia e a história" In: Ditos & Escritos II - Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organizador: Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, pp. 282-295 e pp. 260-281.

DELUMEAU, Jean A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, volume II, 1983, pp. 128-149.

KOYRÉ, A. "O Pensamento Moderno" e "Galileu e Platão" in: Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 15-21 e 152-180.



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