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"É necessário saber perder tempo para comprometer-se nas lutas dos povos periféricos e das classes oprimidas. É necessário saber perder tempo em ouvir a voz de tal povo: suas propostas, interpelações, instituições, poetas, acontecimentos... É necessário saber perder tempo, no curto tempo da vida, em descartar os temas secundários, os da moda, superficiais, desnecessários, os que nada têm a ver com a libertação dos oprimidos." - Enrique Dussel

sábado, 30 de março de 2013

O PENSAMENTO CARTESIANO: INFLUÊNCIAS E CONSEQUÊNCIAS NA MODERNIDADE


Por Almir Fabiano N. de Moraes


INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretende-se traçar um caminho que vai das considerações sobre o período histórico da modernidade até uma breve análise do pensamento de René Descartes, culminando no Discurso do Método, precisamente nas quatro regras do Método.
Para tanto, procurou-se estabelecer um singelo trabalho de pesquisa, a fim de trazer “polifonia” nas concepções e conceitos aqui trabalhados, necessária a todo trabalho para fins acadêmicos.
Pretendemos assim, trabalhar as considerações sobre o período histórico da modernidade a partir dos escritos de Julián Marias e Danilo Marcondes. Para trabalharmos sobre o Discurso do Método, tomaremos por embasamento as obras de Franklin Leopoldo e Silva, Ethel Menezes Rocha e o prefácio da terceira edição do Discurso do Método pela editora Martins Fontes, baseada nos escritos de J. M. Fateaud.

PARTE I: AS ORIGENS DO PENSAMENTO MODERNO

“A etimologia de ‘Moderno’, parece ser o advérbio latino ‘modo’, que significa ‘agora mesmo’, ‘neste instante’, ‘no momento’, portanto designando o que nos é contemporâneo, e é este o sentido que ‘moderno’ capta, oponde-se ao que é anterior, e traçando, por assim dizer, uma linha, ou divisão entre os dois períodos”.
(MARCONDES, 2006, pg. 140)
O conceito de modernidade para nós está sempre relacionado ao “novo”, àquilo que rompe com a tradição. É um período que convencionalmente compreendemos como sendo entre séculos XVII e XIX da nossa era.
O termo “moderno” já era usado na filosofia medieval, no movimento da “lógica modernarum” que se opunha à tradição anterior já no século XIV, no cristianismo, nas questões sobre o objeto da fé que opções “antiqui e moderni”, e na querela dos literários franceses das últimas décadas do século XVII, os quais distinguiam “les ancians et les modernes”.
Portanto, a identidade do período moderno se estabelece inicialmente como uma ruptura e rejeição da autoridade da tradição seguidos de uma concepção de superioridade do “novo”.
Cabe aqui mais uma citação de Danilo Marcondes sobre a concepção de modernidade:
“[...] Duas noções fundamentais estão, entretanto, diretamente relacionadas ao moderno: a idéia de progresso, que faz com que o novo seja considerado melhor ou mais avançado do que o antigo; e a valorização do indivíduo, ou da subjetividade, como lugar de certeza e da verdade, e origem dos valores, em oposição à tradição, isto é, ao saber adquirido, às instituições, à autoridade externa”.
(Ibdem)
Marcondes estabelece três fatores históricos principais que podem ser atribuídos à origem da filosofia moderna: o humanismo renascentista do século XV, a reforma protestante do século XVI e a revolução científica do século XVII. Porém, salienta a importância de outros fatores históricos além destes:
“[...] Vamos analisar em maior detalhe como contribuem decisivamente para a formação do pensamento moderno, sem ignorarmos, no entanto, outros fatores históricos como a descoberta do Novo Mundo (1492), o desenvolvimento do mercantilismo como novo modelo econômico (...), e o surgimento e consolidação dos Estados Nacionais (Espanha e Portugal, Países Baixos, Inglaterra e França), que substituem o modelo político do feudalismo”. (Op. Cit., pg. 141)

I.A – O HUMANISMO RENASCENTISTA:

Marcondes salienta que foi Biagio Vasari quem primeiro empregou o termo “renascimento” (rinascitá) em sua obra “Vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos” (1550), para designar a retomada do estilo clássico na pintura pelo pintor Giotto, influenciando um novo estilo, que rompe com a arte gótica, característica do final do período medieval.
Salienta também que o conceito de Renascimento designando o período histórico intermediários, entre o medieval e o moderno origina-se do historiador da arte Jacob Burkhardt, em sua obra “A civilização do Renascimento na Itália” (1673).
Para Marcondes, o traço mais característico deste período é o humanismo, que segundo ele, chega a ter influência determinante no pensamento moderno. Discorre sobre as características deste período:
- Tem por lema o fragmento do filósofo grego da sofística Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”. Para Marcondes, este lema marca a ruptura com o período medieval, visão hierárquica de mundo, arte voltada para o elemento sagrado e a filosofia à serviço da teologia;
- Retomada da herança greco-romana como base da nova identidade cultural;
- Temas pagãos centrais nas obras de arte;
- Rejeição da filosofia de Aristóteles (referencial escolástico), em contrapartida de uma preferência a Platão, porém um “Platão poeta, estilista da língua grega, dialético e de grandes dons literários;
- Rompimento com a visão teocêntrica e com a concepção filosófico-teológica medieval;
-Ruptura com a importância dada às ciências naturais;
- Tema da “dignitas hominis” (dignidade do homem) opondo-se ao tema medieval “miséria hominis” (miséria do homem);
- Valorização da liberdade humana, visão do homem como centro da criação, da dignidade natural e concepção do “homem como um microcosmo, que reproduz em si a harmonia do cosmo”. (conf. Op.cit.; pgs. 141 e 142).

I.B - A REFORMA PROTESTANTE:

Danilo Marcondes relata que a ruptura provocada pela reforma é um dos fatores da modernidade, no sentido de que o protestantismo – movimento de oposição à Roma – defende a idéia de que a fé é suficiente para que o indivíduo compreenda a mensagem divina dos textos sagrados (regra da fé), não necessitando de intermediação da Igreja. Para ele,
“a ‘regra da fé’ representa na verdade a defesa do individualismo contra a autoridade externa, o saber adquirido e contra as instituições tradicionais, todos colocados sob suspeita”. (Ibdem, pg. 147).
Em relação à influência da Reforma na filosofia moderna, vale citar mais um parágrafo de Marcondes:
“Podemos considerar assim que, de um ponto de vista filosófico, a Reforma aparece neste momento como representante da defesa da liberdade individual e da consciência como lugar da certeza, sendo o indivíduo capaz pela sua luz natural de chagar à verdade (em questões religiosas) e contestar a autoridade institucional e o saber tradicional, posições que se generalizarão além do campo religioso e serão fundamentais no desenvolvimento do pensamento moderno, encontrando-se expressas um século depois em seu mais importante representante, René Descartes. A ênfase dada por Lutero (...) à consciência, certamente prenuncia a filosofia de Descartes, bem como o espírito crítico característico da Modernidade".
(Op. Cit., pg 146).
Julián Marías cita a “regra da fé” como o aspecto mais importante da Reforma, porém ele usa o termo “o livre exame” para referir-se ao mesmo. Marías chega a determinar este aspecto da Reforma como “racionalismo puro”, estabelecendo consonância com a frase inicial de Descartes no Discurso do Método: “o bom senso é o que há de mais bem distribuído no mundo”. (Julián MARÍAS, 2009, pg. 298).
Julián Marías distingue dois tipos de Igreja Reformada:
- Igreja “Nacional”, que se forma em torno da pessoa do Rei;
- Confissão de Ausburgo, supõe um “acordo” sobre matérias de fé, um “protestantismo liberal” que se constitui na supressão de quase todo o conteúdo dogmático.
Pertinentemente, coloca como “o problema da Reforma” a divisão da Europa em Reforma (protestantes) e Contra-Reforma (católicos) – que alguns têm substituído pelo termo “Reforma Católica”. Sobretudo, porém, o que mais nos interessa destacar aqui são as conseqüências históricas que Marías elenca, dos sistemas racionalistas na física e na filosofia (Galileu, Newton, Descartes, Spiñoza e Leibniz):
- O ABSOLUTISMO:
“[...] Temos, pois, um Estado com uma personalidade, e este Estado tem suas razões: age, portanto, como uma mente. Trata-se de uma personificação racionalista do Estado, que aparece junto com as nacionalidades modernas”.
(Ibdem, Pg. 298).
Segundo Marías, a justificação racional da monarquia absoluta é a fala de Descartes sobre política, onde dita que as coisas são mais bem feitas quando feitas segundo a razão, e por um só, não por vários (Ibdem).
- A DIPLOMACIA:
Esta, para Julián Marías é apenas a substituição da relação direta de Estados entre si por uma relação pessoal abstrata.
Conclui assim:
“A nação está personificada no rei absoluto: as relações entre as nações se resumem e personificam na conversação de alguns poucos homens. Os Estados começam a ocupar um lugar na mente de cada indivíduo”
(Op. Cit., pg. 299).

I.C – A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA:

Para Danilo Marcondes, a revolução científica moderna tem seu ponto de partida na “Revolução Copernicana” (1543), com a concepção heliocêntrica do cosmo. Representa para ele um dos fatores de ruptura mais marcantes no início da modernidade, uma vez que ia contra uma teoria estabelecida há mais de vinte séculos.
A rejeição dos modernos pelo Aristotelismo se explica pelo modelo geocêntrico do cosmo e pelo uso escolástico da lógica Aristotélica na demonstração de verdades universais e necessárias, em detrimento da observação e da experiência. A cosmologia não poderia ser considerada independentemente de seus pressupostos metafísicos e teológicos, um modelo que não “salvava os fenômenos” (MARCONDES, 2006, pg. 150).
Marcondes, sobre este aspecto, cita a transformação científica:
“Uma das principais transformações do ponto de vista da metodologia científica está precisamente na invasão dessa ordem de prioridades. A ciência moderna surge quando se torna mais importante salvar os fenômenos e quando a observação, a experimentação e a verificação de hipóteses tornam-se critérios decisivos, suplantando o argumento metafísico”.
(Ibdem, pg. 150).
Ainda seguindo a orientação de Marcondes, considera-se duas grandes transformações que levarão à revolução científica:
1) DO PONTO DE VISTA DA COSMOLOGIA:
- A demonstração da validade do modelo heliocêntrico, empreendida por Galileu;
- A formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno;
- A concepção do movimento dos corpos celestes;
2) DO PONTO DE VISTA DA IDEIA DE CIÊNCIA:
- A valorização da observação e do método experimental como ciência ativa, que se opõe à ciência contemplativa dos antigos;
- A utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica, contrária à concepção aristotélica;
- A ciência ativa rompe com a separação antiga entre ciência (epistême), o saber teórico, e a técnica (techné).
“A Revolução Científica moderna resulta portanto da conjugação desses fatores, para o que contribuíram diferentes pensadores ao longo dos séculos XV e XVII, sendo que, em certos aspectos, rompe de fato decisivamente com a ciência antiga, mas em outros inspira-se ainda em teorias clássicas. Só com Newton, praticamente já no século XVIII, é que teremos a formulação de uma ciência físico-matemática plenamente elaborada em um sistema teórico”.
(op.Cit. pg. 151).
Trataremos mais sobre a revolução científica no próximo item.

PARTE II: O PENSAMENTO CARTESIANO

II.A – INFLUÊNCIA DA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA NO PENSAMENTO CARTESIANO:

Ethel Menezes Rocha considerou o século XVII caracterizado por uma série de descobertas científicas que desafiam as concepções que perduravam por aproximadamente 2 mil anos. Já tratamos (superficialmente) da revolução científica na modernidade.
O que acrescentamos aqui é a relação de novas concepções científicas que influenciavam o pensamento de Descartes, os quais Franklin Leopold e Silva sinaliza:
- A concepção de um universo infinito e descentralizado de Giordano Bruno, em 1.584;
- A publicação da obra “Do magnetismo”, do inglês Gilbert, no mesmo ano em que Giordano Bruno foi queimado;
- A lei do movimento elíptico dos planetas em torno do Sol, de Kepler, em 1.605;
- A comprovação da teoria de Copérnico pela luneta de Galileu, que evidencia um universo não perfeito, como prova as manchas solares e as montanhas da Lua.
Além dos progressos em física, considera também:
- Os trabalhos matemáticos de Napia e Clavius;
- A obra de Willian Harvey sobre a circulação do sangue, em 1.628.
Por serem os principais responsáveis pelo abandono do sistema aristotélico, estes avanços científicos ocasionaram uma separação entre o saber filosófico e o saber científico.
Assim,
“A tarefa de Descartes será a de refazer o caráter sistemático do saber, unindo novamente ciência e filosofia, física e meta-física. E para pensar essa nova fundamentação ele conta com uma concepção de Galileu que está implícita na nova física, e que é formulada pelo astrônomo em sua obra O ensaiador: a natureza está escrita em linguagem matemática”.
(SILVA, F. L., 2.003, pg. 22,23)
Partindo da concepção galilaica, Descartes tentará encontrar os novos fundamentos para o conhecimento não apenas da natureza, mas também de Deus e da alma. Concepção esta cujo aspecto principal consiste em extensão do modelo de conhecimento matemático a todos os objetos.

II.B. SOBRE RENÉ DESCARTES: (Baseado nos escritos de Ethel Menezes Rocha)

René Descartes nasceu a 31 de março de 1.596 em La Haye, uma pequena cidade no distrito francês de Touraine, chamada La Haye – Descartes a partir de 1.802, e veio a falecer em Estocolmo, na Suécia, a 11 de fevereiro de 1.650. Seu pai era conselheiro no Parlamento e proprietário de terras, e sua mãe morreu 19 meses após seu nascimento, tendo sido, a partir de então, criado por sua avó materna. Aos 10 anos, foi enviado ao colégio Jesuíta de La Flèche, perto de Le Mans.
Em 1.611, iniciou seu primeiro ano de estudos em Filosofia, cujo núcleo de ensino era, sobretudo, a filosofia escolástica aristotélica.
Ao deixar La Flèche, Descartes viaja pela Europa e serve como voluntário nos exércitos holandês e bávaro, para “conhecer a verdade, a partir do contato com o mundo”. Em novembro de 1.616 Descartes se muda para a Holanda, onde encontra e inicia uma intensa colaboração com Isaac Beeckman, matemático e físico.
Durante o ano de 1.619, Descartes formula o que seria sua máxima ambição de vida: produzir uma ciência da natureza de acordo com os princípios matemáticos e mecanicistas. Em viajem pela Alemanha, começa a formular sua teoria geral do método e, na noite de 10 de novembro, uma série de sonhos lhe pareceu indicar a aprovação divina a esse seu projeto.
No período entre 1.620 e 1.626, Descartes tem encontros regulares com Mersenne, que advogava o mecanicismo como fundamento da nova física, e com o matemático Johannes Faulhaber que, diferentemente de Beerkman, concebia seu próprio projeto como mais amplo do que apenas uma ciência da mecânica, visão que Descartes compartilhava. Em 1.626, se muda para a Holanda, onde vive, com algumas breves interrupções, até 1.649. Durante esse período, em 1.643, o Cônsul de Utrecht condena a filosofia de Descartes, ameaçando a queima pública de seus livros. Em 1.647, Descartes é condenado por Revius e outros teólogos na Universidade de Leiden.
No final de fevereiro de 1.649, mudou-se para Estocolmo convidado pela Rainha Cristina, morrendo um ano depois.
PRINCIPAIS OBRAS E ESCRITOS:
- Regras para a direção do espírito (1.626 – 1.629)
- O mundo e Tratado sobre o homem (1.638)
- Discurso sobre o método (1.632)
- Ótica, Geometria e Meteorologia (1.637)
- Meditações Metafísicas (1.641)
- Objeções e Respostas (1.641)
- Em busca da verdade (provavelmente 1.642)
- Princípios da Filosofia (1.649)
- Notas contra um certo programa (1.647)
- As paixões da Alma (1.649)
- Conversações com Burman (1.648)

II.C – O DISCURSO DO MÉTODO:

O Discurso do método, embora fosse a primeira obra publicada por Descartes, não foi a primeira a ser escrita. Em 1.628 começou a escrever a “Regra para a direção do espírito”, e em novembro de 1.633 pensou em publicar “O mundo ou Tratado da luz”. Assustado pela ocasião da condenação de Galileu, Descartes decide renunciar à publicação de seu livro.
Em 1.637, Descartes publica o Discurso do método. Dentre as inúmeras razões aparentes que poderiam ter levado Descartes a tomar a decisão de publicar o Discurso, J. M. Fateaud elege três principais sendo a terceira a mais importante:
1ª – Por Questões de Reputação. Descartes quer aceitar os desaqfios que a obra lhe apresenta e, neste sentido, escreve o Discurso para mostrar do que é capaz;
2ª – Para despertar algum interesse por seus trabalhos;
3ª - Para “sondar o terreno”, ou seja, preparar o caminho para a publicação do “tratado de luz” ( FATEAUD Apud: Discurso do Método, Martins Fontes, 2.001, pg XX).
Convém citar:
“[...] Como se vê, uma tática perfeitamente clara: o Discurso deve despertar em alguns a vontade de conhecer o mundo, a ponto de intervirem junto ao Santo Ofício para permitir a Descartes publicá-lo sem perigo” (Ibdem, pg. XXI).
Fateaud observa que ainda que esta manobra audaciosa de Descartes tenha fracassado, não podemos perdê-la de vista quando lemos o Discurso, pois ela esclarece muitos de seus aspectos.
Embora o título do livro apresente uma aparente promessa de “explanação sobre o método”, o Discurso contém vários elementos inesperados, dentre os quais uma narrativa sucinta da carreira do autor, e um esboço bastante amplo de sua doutrina.
Fateaud aposta na possibilidade de esclarecer a intenção de Descartes ao escrever o Discurso do Método para entender a forma como foi organizado. Para tanto, traz duas citações de Descartes, nos quais acredita serem reveladores a este respeito:
“[...] meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha”.
(Discurso do Método, pg.7).
“[...] não ponho Tratado do método, e sim Discurso do método, o que é o mesmo que Prefácio ou Advertência sobre o método, para mostrar que não tenho intenção de ensiná-lo, mas somente de falar sobre ele. Pois, como se pode ver pelo que exponho sobre ele, consiste mais em prática que em teoria, e chamo os ensaios que vêm depois de Ensaios deste método, porque pretendo que as coisas que contêm não poderiam ser encontradas sem ele, e que através delas podemos reconhecer o que ele vale; assim como inseri alguma coisa de metafísica, de física e de medicina no primeiro discurso, para mostrar que o método estende-se a todos os tipos de matérias”.
(Carta a Mersenne de março de 1637 Apud: Prefácio do Discurso do Método, Martins Fontes, 2001, pg. XXV – grifo nosso).
Baseando-se nestas duas citações, Fateaud faz considerações sobre o Discurso do Método, as quais pretende-se neste trabalho apenas citar, conforme segue-se:
- Na primeira citação, sobressai claramente que a intenção do Discurso não é didática, e sim narrativa;
- A segunda citação especifica que não se deve esperar do Discurso um tratado, ou seja, que o objetivo de Descartes não é expor seu método, mas chamar sobre ele a atenção de quem lerá os Ensaios (Dióptrica, Meteoros e Geometria) que o seguem;
- A intenção dominante da obra é, no sentido estrito do termo, apologética;
- a finalidade do Discurso não é, realmente, analisar os principais aspectos do método, mas sugerir seus métodos.
O Discurso do Método – “Para bem conduzir a Razão e procurar a verdade nas ciências”, está dividido em seis partes:
1 – Considerações sobre a Ciência;
2 – Principais Regras do Método;
3 – Regras sobre a Moral;
4 – Fundamentos da Metafísica;
5 – Física, Medicina e a Alma Humana;
6 – Coisas necessárias para se ir além nas investigações.
Assim, a organização do Discurso do Método sugere a seguinte distinção:
1 – Ciências;
2 – Regras Gerais;
3 – Regras Morais;
4 – Metafísica;
5 – Física-Alma humana;
6 – Natureza-Razão.
Por ocasião da singeleza deste trabalho e outras limitações, nos atentaremos apenas à segunda parte do Discurso do Método.
II.D – O MÉTODO CARTESIANO:

Na segunda parte do Discurso do Método, Descartes começa a explanar o seu método, iniciando por estabelecer que o bom-senso (capacidade de distinção entre o falso e o verdadeiro), citado na primeira parte, só é possível de ser aplicado quando as coisas são feitas por uma só mente, e não por várias.
Propõe, em seguida, partir de uma “dúvida metódica”, com o objetivo de reformar os próprios pensamentos e construir um “terreno todo seu”.
Considera a lógica e ciências de origem escolástica como “confusas”, meramente “abstratas”, aparentemente “inúteis” e “restritas à considerações de figuras que fatigam muito a imaginação”. (Discurso do Método, pg. 27). Sendo assim, resolve propor para si mesmo quatro regras “firmes” e “constantes”, que substituirão o grande número de preceitos que a lógica é composta, para guiar sua busca da verdade:
A primeira regra era de “nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal”;
A segunda regra consistia em “dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fossem possível e necessário para melhor resolvê-las”;
A terceira regre pretendia “conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, como degraus, até o conhecimento dos mais compostos”.
E a última regra consistia em “fazer enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que estivesse certeza de nada omitir”. (Ibdem, pg. 23).
Desta forma, podemos enumerar o Método de Descartes da seguinte forma:
1ª Regra: Clareza e Distinção.
2ª Regra: Análise.
3ª Regra: Ordem.
4ª Regra: Enumeração.
Franklin Leolpoldo e Silva considera, em relação ao Método cartesiano que:
- A primeira regra supõe duas atitudes daquele que busca a verdade: De um lado, deve evitar a prevenção, e de outro, evitar igualmente a precipitação;
- a segunda regra pressupõe a anterioridade dos elementos simples sobre as composições;
- A terceira regra é a que permitirá a dedução como forma de ampliar o saber;
- Finalmente, o preceito da enumeração pode ser visto, em parte, como síntese, já que percorre em sentido inverso o caminho percorrido pela análise, numa recuperação da visão de totalidade do conjunto.
(SILVA, 1.993. pg. 31)
Para concluir esta parte, citamos uma consideração de Ethel Menezes Rocha:
“Ao pretender explicar as condições de conhecer o ser, o método cartesiano desloca o enfoque de uma teoria o objeto para uma teoria da constituição do saber. Entretanto, além dessa preocupação que é compartilhada com os pensadores do séculoXVII, Descartes pretende ainda ter elaborado um sistema filosófico abrangente, que envolve uma física, uma lógica e uma meta-física, de moda a substituir a doutrina aristotélica”.
(ROCHA, E.M. apud: PECORARO, R. Clássicos da Filosofia, 2008, pg. 215).

PARTE III: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao discorrermos sobre os fatores que propiciaram o surgimento do período Moderno, pudemos ver como a filosofia cartesiana é fruto de seu tempo. A necessidade de romper com a tradição escolástica/aristotélica, para instaurar um “novo”, para acolher a emergência de concepções que propõe não uma superação, mas uma negação dos valores da tradição, marca a ciência de seu tempo.
René Descartes torna o “ceticismo instrumental” como ponto de partida de sua filosofia, para ir ao encontro da “Mathesis Universalis”. Esta influência da redescoberta do ceticismo antigo, característico de sua época, levou Descartes a se defrontar com a impossibilidade da “dúvida da dúvida” – “Cogito, ergo sun”, anuncia seu retorno da jornada cética.
O ceticismo em Descartes não é um fim em si mesmo. Muito pelo contrário, é o ponto de partida para o conhecimento da verdade. Sua filosofia do Cogito está imbuída do espírito de sua época. Como Descartes fundamenta sua existência? Ora, se penso, logo existo. Como pôde chegar à esta conclusão? Utilizando seu método “para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências”.
Descartes parte em busca do conhecimento da verdade sem se preocupar com a questão da possibilidade de a razão humana acessar esta verdade. Ao propor o Método, Cartesius “baila na sinfonia do zeitgeist”. A crítica à possibilidade e limite do conhecimento da razão é o “topos” da filosofia de Immanuel Kant, no século XVIII.
Contudo, René Descartes não foi simplesmente resultado da influência de seu período, foi também influenciador.
Se o humanismo Renascentista fazia parte do espírito de seu tempo, foi em Descartes que se obteve seu ápice. Juntamente com os físicos e cientistas de sua época, Descartes foi o emancipador da razão humana. Nele encontramos os fundamentos do método científico, presente até hoje nas cátedras acadêmicas.
O nascimento da Ciência Moderna se deu na confluência de duas correntes epistemológicas: O Racionalismo e o Empirismo. Nas bailas da dedução, da análise e da síntese, ambas correntes epistemológicas se assentam no mesmo solo epistêmico da representação antopocêntrica.
Ao trazer o homem para o centro, rompendo com a tradição teocêntrica medieval, o cientista moderno se defronta com o desafio de explicar o funcionamento tão complexo de um cosmos que agora se descobre infinito, descentralizado e não-perfeito (Universo). Influenciados pela invenção do relógio, surge a concepção mecanicista do mundo.
Podemos considerar Descartes o ápice do pensamento moderno. Em sua filosofia, podemos enxergar exatamente os pressupostos da cosmovisão de seu tempo (ruptura com a tradição escolástica, valorização do indivíduo, o homem como centro e a visão mecanicista do mundo), porém, muito mais que síntese do espírito de seu tempo, René Descartes foi o emancipador da razão humana, um divisor de águas, instaurador da “razão instrumental”, tão cara à Ciência Moderna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

DESCARTES, René. Discurso do Método. Martins Fontes, São Paulo: 2.002, 3ª Ed.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia Moderna: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zohar Ed. 2.006.
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2.004, pg. 297-309.
PECORARO, Rossano (org). Os Filósofos - Clássicos da Filosofia: vol.1. Ed. Puc-Rio, Rio de Janeiro: 2008.
SILVA, F.L. Descartes: a metafísica da modernidade. Ed. Moderna, São Paulo: 1993.

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