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"É necessário saber perder tempo para comprometer-se nas lutas dos povos periféricos e das classes oprimidas. É necessário saber perder tempo em ouvir a voz de tal povo: suas propostas, interpelações, instituições, poetas, acontecimentos... É necessário saber perder tempo, no curto tempo da vida, em descartar os temas secundários, os da moda, superficiais, desnecessários, os que nada têm a ver com a libertação dos oprimidos." - Enrique Dussel

sábado, 30 de março de 2013

“PARRHÈSIA” COMO PRÁTICA DISCURSIVA NA EDUCAÇÃO MENOR


POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes
               


“Para além da questão etimológica, no campo educacional, em especial no espaço escolar, onde normal designa, ao mesmo tempo, o estado supostamente harmônico do comportamento disciplinar e intelectual e seu estado ideal, o dever ser, os conceitos e sua utilização comparecem como estratégia para assegurar a relação de poder. A escola é, por excelência, o espaço de legitimação e docilização de corpos e mentes que, moldados culturalmente, traduzem identidades expressas pela mediação da linguagem alicerçada num mundo de valores. Experiências, idéias e diferenças cristalizam-se nas formulações de identidades, na normalização de atos.
                [...] Nesse sentido, no espaço escolar, clama-se pela igualdade; espera-se que todos sejam, saibam e se comportem como todos os demais, em benefício da manutenção da ordem ou para defender a escola, ardil estratégico para apagamento da diferença. “
(MARIGUELA Et. AL. 2009, pp.164).
Quando tratamos da questão do controle e da conseqüente docilização da(s) Adolescência(s) no cotidiano escolar, estamos tratando da questão da relação de poder, como o próprio excerto tomado como prólogo deste artigo demonstra. Aqui, no entanto, vale ressaltar que “poder” não é entendido como mercadoria, algo a ser adquirido, mas sim como prática social, ou seja,  relações de conflitos de interesses.
Observa-se, numa tentativa de diagnosticar o quadro da educação escolar, certa tendência a planificar, isoformar, enquadrar e universalizar as diferentes formas de se compreender como se dão estas práticas sociais, que por sua vez evocam práticas discursivas hegemônicas que “empacotam” o cotidiano escolar em padrões interpretativos e de diagnoses. Pauta-se, a descrita tentativa, em dado padrão (universalizante e estagnador) normativo e normalizante, com o qual se aferem resultados e processos pedagógicos.
É certo que processos, assim como a Educação, não podem ser concebidos sem levar-se em conta a dimensão teleológica de ambos, porém, instaura-se o contra-senso no exercício de conceber a Educação na relação entre causas e efeitos. Faz-se necessário expor que, tal “diagnóstico” só é possível mediante este equivocado discurso interpretativo, uma vez que universalizando as relações entre processos (práticas pedagógicas – causas e efeitos), pode-se estabelecer um ideal representativo, uma NORMA, que por sua vez evoca práticas discursivas normativas e normalizantes.
Neste sentido, CAMARGO & MARIGUELA (2007, p.13,14) citam o conceito de parrhèsia em Foucault, na sua dimensão ética, como estratégia de combate aos discursos hegemônicos e suas práticas estandartizadas.
A palavra parrhèsia “refere-se a um tipo de relação entre quem fala e o que diz” (Ibdem), e como ato de enunciação, refere-se a “alguém que diz tudo o que tem em mente: não oculta nada, abre completamente seu coração e sua mente a outras pessoas mediante o discurso” (FOUCAULT, 2003, p.266 Apud: Op. cit.). Assim, a palavra grega parrhèsia como prática discursiva, define um “ato de enunciação”, onde
“o sujeito que fala não está separado daquilo que fala. sua constituição como sujeito falante é determinada por aquilo que diz; seu ato de fala é sua própria condição de sujeito falante.”
(CAMARGO & MARIGUELA 2007, p.13).
            A dimensão ética da parrhèsia se dá na confluência emergente entre o que se fala e o que se pratica, partindo de um lugar não-comum, onde o experenciável torna-se o ponto de partida (e chegada) de ambos. Partir então do experienciável é a condição que possibilita pensar o cotidiano escolar em sua singularidade, no acolhimento de emergências de acontecimentos, na rede de relações sutis, na confluência das particularidades – portanto, no “cuidado de si”, no êthos.
            No livro “Filosofia na Escola Pública”, Walter Kohan (et. AL.) coloca a questão da experiência como um percurso que atravessa a vida de quem a sustenta:
            “O termo experiência vem do latim experientia, que por sua vez deriva do verbo experior, que significa “provar”, “ter a experiência de”. No grego há um substantivo originário peîra (prova, experiência), do qual se derivam algumas palavras interessantes: empeiría (experiencia), péras (limite, fim), ápeiron (não atravessável, imenso, sem limite, infinito), póros (passo, caminho), aporía (sem caminho, sem saída, impossibilidade), empórion (centro de trânsito, mercado), e peiratés (aquele que atravessa o mar, pirata). Em português, algumas palavras que derivam desta raiz são: experto, perito (“que tem a experiência”) e perigo. Perigo vem de periculum, que originariamente significa ensaio, prova. De forma tal que na raiz da palavra experiência há uma preposição (ex), que indica origem, procedência, e um tema verbal (Perí) que indica um movimento que atravessa, um percurso que não tem destino certo e por isso é indeterminado, perigoso. Como indica sua etimologia, toda autêntica experiência é uma viagem, um percurso que atravessa a vida de quem a sustenta. É também um perigo.
(KOHAN Et. Al., 2000, p.31 – grifo meu)
            Assim, assumir a prática da parrhesía em sua dimensão ética, diz respeito a uma reconsideração ética da tarefa educacional: é colocar-se no “percurso do perigo”, no sentido de que, saindo da zona de conforto, dá lugar à inquietude, à sensibilidade, à atenção.  É, pela crítica, a desconstrução de dogmas, rotinas e aparências, totalizadores, retificadores e universalizantes, bem como pressupostos (pré-conceitos) comumente aceitos sem exame.
            Os resultados e conseqüências de “discursos hegemônicos” universalizantes e totalizadores na Educação convergem na aquisição de práticas docilizadoras de controle e punição. Em contrapartida, ao considerar as emergências de acontecimentos no cotidiano escolar, e assumir uma atitude ética da parrhèsia, o educador se coloca na abertura do experenciável, na construção de criticidade recíproca (tanto o senso crítico do aluno quanto o do educador), assumindo em cada particularidade o “percurso do perigo”, num movimento em rumo à emancipação.
            Silvio Gallo, a partir de suas leituras de Deleuze & Guatarri, contribui com o conceito de educação menor no cotidiano escolar:
            “Proponho tratarmos por educação maior aquela produzida no campo da macropolítica e da gestão, desenvolvida nos gabinetes, no Ministério da educação, nas secretarias de educação de estados e municípios, traçando metas, planos, cronogramas de realização. É também aquela presente nas políticas públicas para educação. A educação maior traduz-se num esforço macropolítico de pensar, organizar, implementar e gerir os processos educacionais como um grande sistema, determinando suas regras, suas metas, suas ações.
            Por educação menor sugiro tomarmos aquela desenvolvida pelos professores na solidão de sua sala de aula, para além de planos, políticas e determinações legais. É também aquela que acontece fora da sala de aula, nas relações e nos acontecimentos do cotidiano da instituição escolar. A educação menor, enfim,  traduz-se num esforço micropolítico de criação e de produção cotidiana, em que professores e estudantes realizam os atos educativos, mas também nas microrrelações estabelecidas na instituição escolar como um todo”
(GALLO, 2007 Apud: MARIGUELA & CAMARGO, 2007, p.28)
O espaço da educação menor é o espaço da parrhèsia. Porém, ela só é possível a partir da educação maior, dos parâmetros, das estruturas, das diretrizes. Nesse sentido, não se trata de negá-los, de antepor a educação menor a maior, de fazer antíteses entre elas. Trata-se se subsumi-las, de abrir possibilidades de resistência e criação pelo fluxo dos acontecimentos, resistir à exclusão e investir na construção de cidadania.
Ora, a diferença não tem lugar no cotidiano escolar. Lida-se com ela pela exclusão e pelo apagamento, trazendo-a para o padrão, para a norma. Isso se dá por causa do que Gallo chama de “sensação de estrangeirismo”, ou “estratificação e estriamento”, nas palavras de Deleuze e Guatarri (Ibdem, p. 36). Somos praticamente jogados na situação de estrangeiros pela emergência das diferenças. “Para Gallo, é fundamental usarmos o impulso desta sensação incômoda de estrangeiridade como ‘motor do pensamento e da criação’, inventando coletivamente formas de viver no dissenso, na diferença, sem impor um consenso, um controle regulador” (Ibdem, p. 35).
Por fim, torna-se fundamental reconhecer que a prática discursiva da parrhèsia na educação menor só se torna possível mediante o reconhecimento de que se trata de uma prática inventiva. Através da análise da emergência de forças, de acontecimentos, podemos traçar o caminho (póros) entre a zona de conforto e a inquietude, sensibilidade, atenção. É então, na dimensão ética do “cuidado de si”, agir no cotidiano escolar como “vetor de transformação”, abrir-se ao acontecimento, “a fim de potencializá-lo criativamente, e não ser tragado, engolido por ele”. Portanto, fazer do experenciável o lugar da crítica, e não da exclusão, inventando-se num movimento duplo em que a prática transforma a teoria e a teoria transforma a prática.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


CAMARGO, A.M.F; MARIGUELA, M. (orgs). Cotidiano escolar: Emergência e Invenção. jacintha Editores, Piracicaba, São Paulo: 2007.
MARIGUELA, A. D.B. & SILVA, R.C. A docilização da(s) adolescência(s) na Escola. In: MARIGUELA, M; CAMARGO, A; SOUZA, R. Que escola é essa? Anacronismos, resistências e Subjetividades. Campinas: Alínea, 2009, p.159-174.
KOHAN, WALTER OMAR Et. Al. (orgs.). Filosofia na escola pública. Ed. Vozes. Petrópolis: 2000. 2ª Edição.

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