POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes
“Para além da questão
etimológica, no campo educacional, em especial no espaço escolar, onde normal
designa, ao mesmo tempo, o estado supostamente harmônico do comportamento
disciplinar e intelectual e seu estado ideal, o dever ser, os conceitos e sua
utilização comparecem como estratégia para assegurar a relação de poder. A
escola é, por excelência, o espaço de legitimação e docilização de corpos e mentes
que, moldados culturalmente, traduzem identidades expressas pela mediação da
linguagem alicerçada num mundo de valores. Experiências, idéias e diferenças
cristalizam-se nas formulações de identidades, na normalização de atos.
[...]
Nesse sentido, no espaço escolar, clama-se pela igualdade; espera-se que todos
sejam, saibam e se comportem como todos os demais, em benefício da manutenção
da ordem ou para defender a escola, ardil estratégico para apagamento da
diferença. “
(MARIGUELA
Et. AL. 2009, pp.164).
Quando tratamos da questão do
controle e da conseqüente docilização da(s) Adolescência(s) no cotidiano
escolar, estamos tratando da questão da relação de poder, como o próprio
excerto tomado como prólogo deste artigo demonstra. Aqui, no entanto, vale ressaltar
que “poder” não é entendido como mercadoria, algo a ser adquirido, mas sim como
prática social, ou seja, relações de
conflitos de interesses.
Observa-se, numa tentativa de
diagnosticar o quadro da educação escolar, certa tendência a planificar, isoformar,
enquadrar e universalizar as diferentes formas de se compreender como se dão
estas práticas sociais, que por sua vez evocam práticas discursivas hegemônicas
que “empacotam” o cotidiano escolar em padrões interpretativos e de diagnoses.
Pauta-se, a descrita tentativa, em dado padrão (universalizante e estagnador)
normativo e normalizante, com o qual se aferem resultados e processos
pedagógicos.
É certo que processos, assim como a
Educação, não podem ser concebidos sem levar-se em conta a dimensão teleológica
de ambos, porém, instaura-se o contra-senso no exercício de conceber a Educação
na relação entre causas e efeitos. Faz-se necessário expor que, tal
“diagnóstico” só é possível mediante este equivocado discurso interpretativo,
uma vez que universalizando as relações entre processos (práticas pedagógicas –
causas e efeitos), pode-se estabelecer um ideal representativo, uma NORMA, que
por sua vez evoca práticas discursivas normativas e normalizantes.
Neste sentido, CAMARGO &
MARIGUELA (2007, p.13,14) citam o conceito de parrhèsia em Foucault, na
sua dimensão ética, como estratégia de combate aos discursos hegemônicos e suas
práticas estandartizadas.
A palavra parrhèsia “refere-se a um tipo de relação entre quem fala e o que
diz” (Ibdem), e como ato de enunciação, refere-se a “alguém que diz tudo o que
tem em mente: não oculta nada, abre completamente seu coração e sua mente a
outras pessoas mediante o discurso” (FOUCAULT, 2003, p.266 Apud: Op. cit.). Assim, a palavra grega parrhèsia como prática
discursiva, define um “ato de enunciação”, onde
“o sujeito que fala não está separado daquilo que fala. sua
constituição como sujeito falante é determinada por aquilo que diz; seu ato de
fala é sua própria condição de sujeito falante.”
(CAMARGO & MARIGUELA 2007, p.13).
A dimensão
ética da parrhèsia se dá na
confluência emergente entre o que se fala e o que se pratica, partindo de um lugar
não-comum, onde o experenciável torna-se o ponto de partida (e chegada) de
ambos. Partir então do experienciável é a condição que possibilita pensar o
cotidiano escolar em sua singularidade, no acolhimento de emergências de
acontecimentos, na rede de relações sutis, na confluência das particularidades
– portanto, no “cuidado de si”, no êthos.
No livro
“Filosofia na Escola Pública”, Walter Kohan (et. AL.) coloca a questão da
experiência como um percurso que atravessa a vida de quem a sustenta:
“O termo experiência vem do latim experientia, que por sua vez deriva do
verbo experior, que significa
“provar”, “ter a experiência de”. No grego há um substantivo originário peîra (prova, experiência), do qual se
derivam algumas palavras interessantes:
empeiría (experiencia), péras
(limite, fim), ápeiron (não
atravessável, imenso, sem limite, infinito), póros (passo, caminho), aporía
(sem caminho, sem saída, impossibilidade), empórion
(centro de trânsito, mercado), e peiratés
(aquele que atravessa o mar, pirata). Em português, algumas palavras que
derivam desta raiz são: experto, perito (“que tem a experiência”)
e perigo. Perigo vem de periculum,
que originariamente significa ensaio, prova. De forma tal que na raiz da
palavra experiência há uma preposição (ex),
que indica origem, procedência, e um tema verbal (Perí) que indica um movimento que atravessa, um percurso que não
tem destino certo e por isso é indeterminado, perigoso. Como indica sua etimologia, toda autêntica experiência é uma viagem, um
percurso que atravessa a vida de quem a sustenta. É também um perigo.”
(KOHAN Et. Al., 2000, p.31 – grifo
meu)
Assim,
assumir a prática da parrhesía em sua
dimensão ética, diz respeito a uma reconsideração ética da tarefa educacional:
é colocar-se no “percurso do perigo”, no sentido de que, saindo da zona de
conforto, dá lugar à inquietude, à sensibilidade, à atenção. É, pela crítica,
a desconstrução de dogmas, rotinas e aparências, totalizadores, retificadores e
universalizantes, bem como pressupostos (pré-conceitos) comumente aceitos sem
exame.
Os
resultados e conseqüências de “discursos hegemônicos” universalizantes e
totalizadores na Educação convergem na aquisição de práticas docilizadoras de
controle e punição. Em contrapartida, ao considerar as emergências de
acontecimentos no cotidiano escolar, e assumir uma atitude ética da parrhèsia, o
educador se coloca na abertura do experenciável, na construção de criticidade
recíproca (tanto o senso crítico do aluno quanto o do educador), assumindo em
cada particularidade o “percurso do perigo”, num movimento em rumo à
emancipação.
Silvio Gallo,
a partir de suas leituras de Deleuze & Guatarri, contribui com o conceito
de educação
menor no cotidiano escolar:
“Proponho tratarmos por educação maior
aquela produzida no campo da macropolítica e da gestão, desenvolvida nos
gabinetes, no Ministério da educação, nas secretarias de educação de estados e
municípios, traçando metas, planos, cronogramas de realização. É também aquela
presente nas políticas públicas para educação. A educação maior traduz-se num
esforço macropolítico de pensar, organizar, implementar e gerir os processos
educacionais como um grande sistema, determinando suas regras, suas metas, suas
ações.
Por educação menor
sugiro tomarmos aquela desenvolvida pelos professores na solidão de sua sala de
aula, para além de planos, políticas e determinações legais. É também aquela
que acontece fora da sala de aula, nas relações e nos acontecimentos do
cotidiano da instituição escolar. A educação menor, enfim, traduz-se num esforço micropolítico de
criação e de produção cotidiana, em que professores e estudantes realizam os
atos educativos, mas também nas microrrelações estabelecidas na instituição
escolar como um todo”
(GALLO, 2007 Apud: MARIGUELA & CAMARGO, 2007,
p.28)
O espaço da educação menor é o espaço
da parrhèsia. Porém, ela só é
possível a partir da educação maior, dos parâmetros, das estruturas, das
diretrizes. Nesse sentido, não se trata de negá-los, de antepor a educação
menor a maior, de fazer antíteses entre elas. Trata-se se subsumi-las, de abrir
possibilidades de resistência e criação pelo fluxo dos acontecimentos, resistir
à exclusão e investir na construção de cidadania.
Ora, a diferença não tem lugar no
cotidiano escolar. Lida-se com ela pela exclusão e pelo apagamento, trazendo-a
para o padrão, para a norma. Isso se dá por causa do que Gallo chama de
“sensação de estrangeirismo”, ou “estratificação e estriamento”, nas palavras
de Deleuze e Guatarri (Ibdem, p. 36). Somos praticamente jogados na situação de
estrangeiros pela emergência das diferenças. “Para Gallo, é fundamental usarmos
o impulso desta sensação incômoda de estrangeiridade como ‘motor do pensamento
e da criação’, inventando coletivamente formas de viver no dissenso, na
diferença, sem impor um consenso, um controle regulador” (Ibdem, p. 35).
Por fim, torna-se fundamental
reconhecer que a prática discursiva da parrhèsia na educação menor só se torna
possível mediante o reconhecimento de que se trata de uma prática inventiva. Através da análise da emergência de forças, de
acontecimentos, podemos traçar o caminho (póros)
entre a zona de conforto e a inquietude, sensibilidade, atenção. É então, na
dimensão ética do “cuidado de si”, agir no cotidiano escolar como “vetor de
transformação”, abrir-se ao acontecimento, “a fim de potencializá-lo
criativamente, e não ser tragado, engolido por ele”. Portanto, fazer do
experenciável o lugar da crítica, e não da exclusão, inventando-se num
movimento duplo em que a prática transforma a teoria e a teoria transforma a
prática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CAMARGO, A.M.F; MARIGUELA, M. (orgs). Cotidiano escolar: Emergência e
Invenção. jacintha Editores, Piracicaba, São Paulo: 2007.
MARIGUELA, A. D.B. & SILVA, R.C. A docilização da(s) adolescência(s) na Escola. In: MARIGUELA, M;
CAMARGO, A; SOUZA, R. Que escola é essa? Anacronismos,
resistências e Subjetividades. Campinas: Alínea, 2009, p.159-174.
KOHAN, WALTER
OMAR Et. Al. (orgs.). Filosofia na escola pública.
Ed. Vozes. Petrópolis: 2000. 2ª Edição.
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