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"É necessário saber perder tempo para comprometer-se nas lutas dos povos periféricos e das classes oprimidas. É necessário saber perder tempo em ouvir a voz de tal povo: suas propostas, interpelações, instituições, poetas, acontecimentos... É necessário saber perder tempo, no curto tempo da vida, em descartar os temas secundários, os da moda, superficiais, desnecessários, os que nada têm a ver com a libertação dos oprimidos." - Enrique Dussel

sábado, 30 de março de 2013

A PSICOLOGIA COMO CIENCIA INDEPENDENTE [IN: PSICOLOGIA UMA (NOVA) INTRODUÇÃO]

POR Almir Fabiano Nicolau de Moraes


No século XIX começam a se constituir ciências da sociedade, como a Economia, Política, História, Antropologia, Sociologia e Linguística, todas tratando das ações humanas, das suas obras e seus comportamentos, estando então as questões psicológicas dispersas nos diálogos entre essas ciências. Podemos analisar como se deu essa emergência da ciência psicológica fazendo um panorama sobre a história do pensamento, do Positivismo à contemporaneidade, e levantarmos as questões da subjetividade privatizada, sua experiência e experiência de sua crise.
            No positivismo de Auguste Comte (1798-1857), só havia lugar para as ciências biológicas e sociais, e como o ‘objeto de estudo’ considerado da Psicologia era a mente, e essa por sua vez não era passível de observação, não se achou lugar para a Psicologia se constituir ciência, tendo que entender-se ora parcialmente reconhecida como dependente da ciência biológica, ora da ciência sociológica. Como resultado de pesquisas historiográficas e antropológicas reconhecerem a experiência da subjetividade privatizada enquanto um fato social, portanto desenvolvendo-se, difundindo-se e propagando-se num contexto sociológico, surge o interesse de estudar-se os fatores constitutivos dessas experiências subjetivas enquanto tradições culturais.
            Estas mesmas pesquisas acabaram por demonstrar que as grandes irrupções da experiência subjetiva privatizada ocorrem em situações de crise social, quando os valores, normas e costumes são contestados, surgindo novas formas de vida. Isso se dá pelo fato do homem se ver obrigado a recorrer ao seu ‘foro íntimo’, uma vez que a vivência de uma experiência de desconstrução valorativa força-o a construir referencias internas, inferindo sobre sua identidade, sentimento, desejo e concepção de justiça. O homem imerso nessa experiência subjetiva sente-se como livre, e responsável por sua própria vida.
            Podemos entender que essa experiência de ‘perda de referencias’ teve seu ápice no advento da Modernidade, uma vez que o Renascimento desconstruiu a sensação de ordem superior que amparava ao mesmo tempo que constrangia o homem medieval. O surgimento da Imprensa proporcionou a experiência da leitura silenciosa, o que propiciou a experiência da criação de um diálogo interno, desenvolvendo um ponto de vista próprio no sujeito. Essa falta de referencias ‘medievais’ no período moderno culminou no ceticismo, que levanta a questão da impossibilidade do conhecimento seguro sobre o mundo, que, somada ao grande individualismo crescente resultou em duas epistemologias distintas: O Racionalismo e o Empirismo.
            Nas “raias do Humanismo”, encontramos a tentativa de resgatar os valores medievais na pessoa de Pico Della Miranda, que chegou à concepção de que a liberdade é um grande e exclusivo dom de Deus, sendo o homem recompensado ou punido de acordo com o uso dele. Assim, o sujeito deve sujeitar-se mais uma vez, desvalorizando seus desejos e projetos particulares.
            Com o Iluminismo ( século XVIII), vem a dúvida da capacidade humana de atingir a verdade absoluta e indubitável, defendida pelo Racionalismo Moderno Cartesiano por meio da liberdade total da razão, em antítese ao Empirismo Moderno de Francis Bacon. O Filósofo Hume  coloca o “eu” como efeito de sua experiência, não mais como senhor dela, o que podemos perceber claramente em sua máxima “Tábula Rasa”. Já para Kant, o homem pode absolutizar as coisas tal como se apresentam para ele fenomenicamente, não as coisas ‘em si’ .
            Diante de toda essa dialética epistemológica, surge com o Romantismo (fim do século XVIII) a idéia de um homem não mais essencialmente racional, mas passional e sensível, deslocando assim o “eu” para um lugar obscuro. É com Nietzsche e sua ‘ filosofia-à-marteladas’ que a noção de “sujeito” e do “eu” são definitivamente desconstruídos, sendo relegados á ordem da ficção, e considerada fantasiosa toda afirmação de que exista uma posição central no mundo, de que o homem esteja nessa posição,e até mesmo a afirmação de uma unidade.
            O sistema sócio-econômico com suas cargas de conflitos e transformações também aprofundou e universalizou aquelas experiências subjetivas. A situação de barganha -  onde o que vale é ‘tirar vantagem do outro para o proveito próprio’ – levou a experiência de que os interesses de cada um são mais importantes do que os interesses da sociedade, bem como o mercado de trabalho, que baseia-se no pressuposto da massificação da condição humana, enquanto simples mão-de-obra, alienando o homem trabalhador de reconhecer-se experiente de subjetividade. Desaparece a noção de liberdade e solidariedade; nesse contexto, ser livre significa ser desamparado.
            Em contrapartida, na busca de reduzir os ‘inconvenientes’ da liberdade, das diferenças singulares, etc, o Estado instala no indivíduo um verdadeiro sistema de docilização e domesticação, colocando em risco as idéias liberais de igualdade, liberdade e fraternidade. A descoberta da presença forte desse sistema de docilização do indivíduo chamado Disciplina põe em crise a subjetividade privatizada, enquanto os indivíduos percebem-se iludidos nos ideais de liberdade e diferença, e os interesses particulares levam a conflitos. A liberdade para cada um tratar de seus negócios desencadeou crises, lutas e guerras.
            O Estado, vendo a necessidade de combater os movimentos reivindicatórios e para por um pouco de ordem na vida social, faz-se desenvolver-se em sua estrutura administrativa, burocrática e militar. Em meio a essa crise, expressa-se o reconhecimento de que existe um sujeito individual, e a esperança de que é possível padronizá-lo segundo uma disciplina, normatizá-lo, e colocá-lo enfim ao serviço de uma ordem social demanda uma psicologia aplicada, principalmente nos âmbitos da educação e trabalho. Assim, o próprio regime Disciplinar, em si mesmo, exige a produção de um certo tipo de conhecimento psicológico.
            Dessa forma, estabelece-se assim, no final do século XVIII as condições para a elaboração de um projeto de psicologia como ciência independente, e para as tentativas de definição do papel do psicólogo como profissional nas áreas de saúde, educação e trabalho.
           

FONTE: FIGUEIREDO, L.C.M; SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de: Psicologia Uma (nova) Introdução.EDUC, SP, 2008 – 3ª edição. Pp. 12-53.


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