No século XIX começam a se constituir
ciências da sociedade, como a Economia, Política, História, Antropologia,
Sociologia e Linguística, todas tratando das ações humanas, das suas obras e
seus comportamentos, estando então as questões psicológicas dispersas nos
diálogos entre essas ciências. Podemos analisar como se deu essa emergência da
ciência psicológica fazendo um panorama sobre a história do pensamento, do Positivismo
à contemporaneidade, e levantarmos as questões da subjetividade privatizada,
sua experiência e experiência de sua crise.
No
positivismo de Auguste Comte (1798-1857), só havia lugar para as ciências
biológicas e sociais, e como o ‘objeto de estudo’ considerado da Psicologia era
a mente, e essa por sua vez não era passível de observação, não se achou lugar
para a Psicologia se constituir ciência, tendo que entender-se ora parcialmente
reconhecida como dependente da ciência biológica, ora da ciência sociológica.
Como resultado de pesquisas historiográficas e antropológicas reconhecerem a
experiência da subjetividade privatizada enquanto um fato social, portanto
desenvolvendo-se, difundindo-se e propagando-se num contexto sociológico, surge
o interesse de estudar-se os fatores constitutivos dessas experiências
subjetivas enquanto tradições culturais.
Estas
mesmas pesquisas acabaram por demonstrar que as grandes irrupções da
experiência subjetiva privatizada ocorrem em situações de crise social, quando
os valores, normas e costumes são contestados, surgindo novas formas de vida.
Isso se dá pelo fato do homem se ver obrigado a recorrer ao seu ‘foro íntimo’,
uma vez que a vivência de uma experiência de desconstrução valorativa força-o a
construir referencias internas, inferindo sobre sua identidade, sentimento,
desejo e concepção de justiça. O homem imerso nessa experiência subjetiva
sente-se como livre, e responsável por sua própria vida.
Podemos
entender que essa experiência de ‘perda de referencias’ teve seu ápice no
advento da Modernidade, uma vez que o Renascimento desconstruiu a sensação de
ordem superior que amparava ao mesmo tempo que constrangia o homem medieval. O
surgimento da Imprensa proporcionou a experiência da leitura silenciosa, o que
propiciou a experiência da criação de um diálogo interno, desenvolvendo um
ponto de vista próprio no sujeito. Essa falta de referencias ‘medievais’ no
período moderno culminou no ceticismo, que levanta a questão da impossibilidade
do conhecimento seguro sobre o mundo, que, somada ao grande individualismo
crescente resultou em duas epistemologias distintas: O Racionalismo e o
Empirismo.
Nas
“raias do Humanismo”, encontramos a tentativa de resgatar os valores medievais
na pessoa de Pico Della Miranda, que chegou à concepção de que a liberdade é um
grande e exclusivo dom de Deus, sendo o homem recompensado ou punido de acordo
com o uso dele. Assim, o sujeito deve sujeitar-se mais uma vez, desvalorizando
seus desejos e projetos particulares.
Com
o Iluminismo ( século XVIII), vem a dúvida da capacidade humana de atingir a
verdade absoluta e indubitável, defendida pelo Racionalismo Moderno Cartesiano
por meio da liberdade total da razão, em antítese ao Empirismo Moderno de
Francis Bacon. O Filósofo Hume coloca o
“eu” como efeito de sua experiência, não mais como senhor dela, o que podemos
perceber claramente em sua máxima “Tábula
Rasa”. Já para Kant, o homem pode absolutizar as coisas tal como se
apresentam para ele fenomenicamente, não as coisas ‘em si’ .
Diante
de toda essa dialética epistemológica, surge com o Romantismo (fim do século
XVIII) a idéia de um homem não mais essencialmente racional, mas passional e
sensível, deslocando assim o “eu” para um lugar obscuro. É com Nietzsche e sua
‘ filosofia-à-marteladas’ que a noção de “sujeito” e do “eu” são
definitivamente desconstruídos, sendo relegados á ordem da ficção, e
considerada fantasiosa toda afirmação de que exista uma posição central no
mundo, de que o homem esteja nessa posição,e até mesmo a afirmação de uma
unidade.
O
sistema sócio-econômico com suas cargas de conflitos e transformações também
aprofundou e universalizou aquelas experiências subjetivas. A situação de
barganha - onde o que vale é ‘tirar
vantagem do outro para o proveito próprio’ – levou a experiência de que os
interesses de cada um são mais importantes do que os interesses da sociedade,
bem como o mercado de trabalho, que baseia-se no pressuposto da massificação da
condição humana, enquanto simples mão-de-obra, alienando o homem trabalhador de
reconhecer-se experiente de subjetividade. Desaparece a noção de liberdade e
solidariedade; nesse contexto, ser livre significa ser desamparado.
Em
contrapartida, na busca de reduzir os ‘inconvenientes’ da liberdade, das
diferenças singulares, etc, o Estado instala no indivíduo um verdadeiro sistema
de docilização e domesticação, colocando em risco as idéias liberais de
igualdade, liberdade e fraternidade. A descoberta da presença forte desse
sistema de docilização do indivíduo chamado Disciplina põe em crise a
subjetividade privatizada, enquanto os indivíduos percebem-se iludidos nos
ideais de liberdade e diferença, e os interesses particulares levam a
conflitos. A liberdade para cada um tratar de seus negócios desencadeou crises,
lutas e guerras.
O
Estado, vendo a necessidade de combater os movimentos reivindicatórios e para
por um pouco de ordem na vida social, faz-se desenvolver-se em sua estrutura
administrativa, burocrática e militar. Em meio a essa crise, expressa-se o
reconhecimento de que existe um sujeito individual, e a esperança de que é
possível padronizá-lo segundo uma disciplina, normatizá-lo, e colocá-lo enfim
ao serviço de uma ordem social demanda uma psicologia aplicada, principalmente
nos âmbitos da educação e trabalho. Assim, o próprio regime Disciplinar, em si mesmo,
exige a produção de um certo tipo de conhecimento psicológico.
Dessa
forma, estabelece-se assim, no final do século XVIII as condições para a
elaboração de um projeto de psicologia como ciência independente, e para as tentativas
de definição do papel do psicólogo como profissional nas áreas de saúde,
educação e trabalho.
FONTE: FIGUEIREDO, L.C.M; SANTI, Pedro Luiz
Ribeiro de: Psicologia Uma (nova)
Introdução.EDUC, SP, 2008 – 3ª edição. Pp. 12-53.
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